Os desenhos surgem aos nossos olhos como se fossem traços inacabados. Autobiografia escrita por meio de imagens, a arte permite que a artista visual Naihara Moraes crie lugares, pessoas, cidades, botecos, ruas – pelas quais ela flanou. É uma investigação que parte do próprio corpo, uma força criadora da própria ação, ou melhor, é aí que os trejeitos de um país capitalista e conservador como o Brasil, onde a censura controla corpos, diz como deve ser a expressão da sexualidade e defeca regras.
“Compreender meu corpo, minha sexualidade, os movimentos LGBTQIA+ é não me conformar com a política intolerante. Irromper com os meios de controle que disseminam o ódio, faz parte da minha trajetória. O carvão é companheiro de devaneios, assim como a música e a câmera”, afirma Naihara, em entrevista ao DM. E tomo a liberdade para fazer um adendo: a técnica mista das obras da artista misturam-se à sua personalidade, da aquarela ao grafite, do carvão à tinta acrílica e borrões poéticos.
Ou seja, na vivência somaticoperformativa, no anseio pela construção de singularidades, edificando o papel imposto à mulher numa sociedade que reproduz padrões do patriarcado, num modelo de vida misógino e sexista... É na criação artística que Naihara encontra ferramentas para resistir à censura, às políticas que encarceram, enclausuram, amordaçam e, não raro, ceifam. Mas Naihara afirma que, em sua produção criativa, não há um cronograma ou apego às vanguardas e movimentos estéticos.
“O desenho aconteceu mesmo: um belo dia eu dormi Naihara diretora de arte e, no outro dia, acordei Naihara desenhista. Então, não consigo identificar muito uma vanguarda. Posso dizer que a mistura dos materiais que eu proponho tem uma vertente ali que é mais expressionista, com traços borrados, mal-sugeridos, mal-feitos, como se eu não tivesse a intenção de terminá-los”, afirma a artista visual.
Em “Medo”, obra produzida em acrílico com carvão sobre papel, ela demostra – a partir de um corpo nu – a complexidade da figura humana sob um governo autoritário, que cala aqueles que lhe é diferente.
O mais surpreendente: não há uma técnica específica no trabalho da artista, e sim uma mistura charmosa – talvez um convite à reflexão, ao desejo de nos tornamos mais evoluídos e à necessidade de romper paradigmas de uma estrutura social caduca. Sua poética é mista, numa simbiose bem arranjada entre o confuso ou inacabado, como se a vida e os problemas nada mais fossem que a consequência da existência.
“Ultimamente, tenho dito que eu gosto de trabalhar no intermédio, porque eu consigo ir de um lado para o outro de maneira mais fluída", explica a Naihara. "Meu trabalho traz essa característica do devir, dos movimentos, essa coisa de misturar arte e vida. Até nas próprias imagens, no próprios desenhos, eu trago esse paralelo entre vida e morte."
De fato, as vezes os desenhos não parecem figuras nem vivas, tampouco mortas: é a busca permanente por traz a fantasmagoria para um universo provavelmente em desencanto. E pensar sobre essas questões com um olhar atento, cuidadoso e sensível. “Sou criada por avó artista: ela era crocheteira, ela fazia muitos artesanatos, pintava tecido. Mas nunca foi algo que eu tive interesse em me dedicar para aquilo. Trago essa vivência artística de dentro de casa. E logo cedo comecei a fazer esculturas.”
Formada em direito, desde pequena já tinha essa combustão proporcionada pela arte. Depois de dez anos advogando, Naihara passou uma crise, e foi o estopim para que ela rompesse com o universo da toga. “Decidi prestar vestibular novamente, para direção de arte. Era um curso que eu curti, tô fazendo ainda, mas acabei optando por ele e não artes visuais.”
A arte de Naihara é original em sua essência e propõe diálogo com outras áreas, como literatura e performance, por exemplo. Influenciada por Âmbar Pictórica, Beta MxReis e Hilda Hilst, ela rabisca em lápis e giz e faz de seus desenhos uma conversa constante com tédio. Naihara Moraes exporá em breve seus desenhos, esculturas e gravuras.
Enquanto isso, resta-nos apenas contemplar a obra dessa que seguramente é uma das artistas mais provocativas da cena cultural goianiense. Nascida em Alto Araguaia (MT), Naihara mostra - antes de qualquer coisa - que é pela linguagem da transgressão provocada por rabiscos que conseguimos, senão combater, aos menos compreender os distúrbios de nosso país.