Figura mais ilustre a ser atacada pelos extremistas brasileiros, o filósofo da educação Paulo Freire completaria 100 anos neste sábado (18) e veria que suas ideias estão mais vivas do que nunca. É de Freire, por exemplo, a obra “Pedagogia do Oprimido” (1968) – livro nascido da luta empreendida pelo próprio autor para dar às pessoas, sem distinção de classe social, o direto delas terem autonomia sobre seus processos de conhecimento a partir dos quais despertariam coragem para mudança social.
O pensamento paulofreireano se tornou símbolo no mundo subdesenvolvido ao mesmo tempo em que virou um propulsor da libertação entre os países desenvolvidos. Defensor das artes no processo de aprendizado, suas ações foram um manifesto iluminista a favor da cultura – ele chegou a lecionar na Escola de Belas Artes do Recife, fechada na década de 1970 e cujo acervo foi integrado ao Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), nos anos 1980.
“Paulo Freire é um dos principais intelectuais brasileiros da história. É o mais estudado no mundo. Os vários monitores de trabalhos acadêmicos que existem o apontam como tal, principalmente seu livro “Pedagogia do Oprimido”’, diz Claudiney Ferreira ao Diário da Manhã, gerente do núcleo de Audiovisual e Literatura do Itaú Cultural e integrante da Ocupação Paulo Freire, que abre neste sábado (19). “Dizer que ele estraga a educação brasileira é uma falácia, é quase uma idiotice, é uma idiotice.”
Em constante diálogo com seus alunos, Freire descobriu que era preciso saber ouvir e trabalhar em conjunto. Sempre guiado pelo senso sensibilidade social que lhe era característico, entendeu também que a educação não está separada das condições e perspectivas de vida de cada um. A partir desses pilares, criou uma prática pedagógica que se estabelece no universo do educando: é preciso não só ensinar a grafia da palavra casa, mas também o direito de cada um ter uma para morar.
Para a professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP) Ana Mae Barbosa, Freire é responsável por transformar sua vida, assim como a de milhares de pessoas brasileiras ao lhes possibilitar compreender as ordens que estruturam a sociedade que as oprimem. Ela conta que, aos 18 anos, quando foi aluna do pensador, não só de língua portuguesa, mas também de teoria da educação, em 1955, começou a ver as ideias dele sendo influídas não só nas escolhas que fazia e ideias que pensava, e sim na vida.
“No curso organizado por ele e por sua primeira mulher, Elza Freire, eu, que sempre odiei as aulas de desenho geométrico, conhecendo as teorias modernistas do ensino da arte com Noêmia Varela, uma das professoras, mais uma vez me surpreendi com a educação errada que eu tivera em um colégio de freiras. Certa vez, uma delas rasgou um desenho meu na frente de toda a classe, porque não copiei exatamente o que ela desenhara na lousa”, recorda-se Barbosa, em texto exclusivamente produzido para publicação na Ocupação Paulo Freire e veiculado em livro de mesmo nome.
Freire, ao jornalista Ricardo Kotscho, afirmou que a palavra pressupõe uma leitura anterior do mundo, e toda leitura da palavra implica a volta sobre a leitura do mundo, de tal maneira que “ler o mundo” ou “ler a palavra” se constitui como movimento em que não há ruptura. “‘Ler mundo’ e ‘ler palavra’, no fundo, para mim, implicam ‘reescrever’ o mundo. Reescrever com aspas, quer dizer, transformá-lo. A leitura da palavra deve ser inserida na compreensão da transformação do mundo, que provoca a leitura dele e deve remeter-nos, sempre, à leitura de novo do mundo.”
Nascido em 1921 no Recife (PE), Freire obteve bolsa de estudos para cursar o ensino secundário no Colégio Oswaldo Cruz, no qual se tornou professor de Português. Foi, inclusive, sua primeira experiência em sala de aula. Em 1943, ingressou na Faculdade de Direito, formando-se quatro anos depois. Mesmo diplomado, abandonou a advocacia. Anos mais tarde, passou pelo Sesi, pela UFPE e teve participação no Movimento Cultura Popular, também na capital pernambucana – há vasta documentação nesse sentido na exposição do Itaú Cultural.
Taxado pela ditadura militar como subversivo por causa do Plano Nacional de Alfabetização, o pensador precisou passar um longo período exilado no Chile, e foi lá que se dedicou à escrita: ali, entre outros textos que depois viriam ser importantes para a intelectualidade brasileira, redigiu o clássico “Pedagogia do Oprimido”. O Chile, nos anos seguintes, também experimentaria um golpe civil-militar orquestrado pela imprensa local, com apoio dos Estados Unidos. Freire, então, parte para EUA e Suíça.
Em 1970, ao publicar o livro escrito no país andino, virou professor da Universidade de Genebra. Entre 1975 e 1979, Freire liderou programas de alfabetização e educação em Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola e São Tomé e Príncipe. “Existem 20 institutos Paulo Freire no mundo. A educação na Finlândia, considerada das melhores no mundo, se utiliza muito do pensamento dele”, explica um dos curadores da Ocupação Paulo Freire, Claudiney Ferreira. O retorno ao Brasil ocorreu após a Anistia, em 1980.
No regresso, começou a dar aulas da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Premiado pela Unesco, exerceu o cargo de secretário municipal de Educação durante a gestão de Luiza Erundina. Freire morreu em 1997, aos 75 anos, e lançou postumamente “Pedagogia da Autonomia”.
Assim como foi na Ocupação Vladimir Herzog, retomada com o objetivo de valorizar a memória de um dos jornalistas mais importantes da imprensa brasileira, há ampla documentação: tanto Vlado, como o ex-diretor de jornalista da TV Cultura, como o morto pela ditadura em 1975 era chamado pelos amigos, quanto Paulo Freire têm como pilar de seus trabalhos o amor incondicional ao ser humano. Se Herzog precisou lutar contra o nazismo ainda na infância (sua família foi praticamente dizimada na Segunda Guerra), Freire enfrenta hoje a fúria de uma direita truculenta e ignorante.
É nesse sentido que a exposição se torna um urgente chamado para que a sociedade brasileira saiba quem foi Paulo Freie e, com isso, evite a amnésia social. Na Ocupação, fica claro que as pessoas eram o objeto de seus estudos. “Sem esse amor ele não teria construído nada”, arremata Claudiney Ferreira.