Otto Guerra, 65, recorre ao dramaturgo Domingos de Oliveira para, na epígrafe da autobiografia “Nem Doeu”, lançada pela editora goiana Mmarte, oferecer ao leitor o tom que de certo modo permeou sua vida. “O humor é a única forma de falar sério da vida”, diz o diretor de “Todas as Mulheres do Mundo”. Também, pudera: as referências de Otto são autores que giram em torno da gargalhada perante a tragédia e ideia de competitividade – em geral, sem empatia – que rege nossa civilização.
As gavetas da memória abertas pelo realizador da obra-prima da animação brasileira, “Wood & Stock – Sexo, Orégano & Rock’n’roll” (2006), reservam saborosas digressões e lembranças. Gaúcho de Porto Alegre (RS), nascido em 5 de março de 1956, ele desfere sua jocosidade já no primeiro parágrafo, ao abrir o texto com um ferino fluxo de consciência sobre o vazio da existência. “Não existir, depois de existir e de novo não existir. Bilhões de anos e se repete essa mesma lengalenga: trepa, agrega, morre, desagrega. E pra quê? Se vamos morrer, por que diabos nascemos? Talvez seja porque a vida é foda. Amo e odeio estar aqui, caminhando sobre a Terra”, escreve.
Nome seminal do cinema de animação, com longas-metragens como “Rock & Hudson – Os Caubóis Gays” (1995) e “Até Que a Sbórnia nos Separe” (2013) no currículo, contar histórias sempre foi uma prática na vida de Otto, além da oralidade: nos parágrafos iniciais de “Nem Doeu”, por exemplo, o cineasta relata que, no caminho entre a sala de parto e o depósito de recém-nascidos, quase ninguém percebeu quando um robusto bebê apanhou o prontuário, muniu-se de uma caneta Bic e, bem ali, desenhou um pequeno pônei em cujo lombo escreveu, com grafia torta e insipiente, SOS.
“Minha vida, como a de qualquer pessoa, tem histórias interessantes, engraçadas, trágicas”, afirma o cineasta em entrevista ao Diário da Manhã. Então, ao ser convidado – por engano – para falar num evento na cidade de Cruz Alta (RS) junto com o escritor brasileiro Marcelino Freire sobre literatura e marginalidade é que Otto resolveu registar, em palavras, suas peripécias. “Foi bem mais complicado do que eu imaginava: foram três anos para conseguir chegar ao resultado que eu gosto”, reconhece.
Alcoolátradidata inveterado, foi insistindo em não levar a sério as incongruências da vida que resolveu montar uma produtora de animação no sul do Brasil, em 1978, época na qual o país ainda vivia sob os resquícios do golpe militar de 1964. “Era uma porra-louquice, irresponsabilidade, fé e paixão.” Um monte de coisas que não são, digamos, aprendidas nos bancos das escolas ou aceitas pela patota da moral e bons costumes: é vendido, desde o primário, a ideia de que, para sermos bem-sucedidos, precisamos respeitar regras, termos disciplina e, claro, não desafiarmos o status quo.
“Pra fazer filmes com a impossibilidade total de fazê-los, é só apelando mesmo para a inconsequência”, ensina. Esse método estruturou também “Nem Doeu”. Otto escreveu cerca de mil páginas, para sobrar 130. Montou-as e remontou-as com religiosa obsessão, até que o editor lhe interpelou: “pô, cara, chega”. “Falei tá bem, não vai acabar nunca. Gosto do resultado do livro no final das contas. E do trabalho de animação: nunca pensei em realizar cinco longas-metragens, e estamos fazendo mais dois agora”, diz.
A forma encontrada para viabilizar a produtora foi fazer publicidade. Nas contas de Otto, ele realizou quase 600 filmes. “A publicidade e propaganda deveria ser um crime inafiançável. É muita sacanagem”, sentencia. Mas esclarece: “foi só um instrumento pra conseguir comprar equipamento, adquirir conhecimento, pra fazer filmes de ficção, que é uma coisa que me interessa desde sempre. Fazia quadrinhos, programas de rádio quando surgiu a gravadora K7. Então foi uma passagem.”
Fã de álcool, o cineasta – quando convidado para uma atividade mais saudável – esquiava-se citando o jornalista Paulo Francis: “intelectual não vai à praia. Intelectual bebe.” E foi, entre uma dose aqui e ali, que desenrolou uma das passagens mais engraçadas da vida de Otto Guerra, narrada pelo cartunista Adão Iturrusgarai na contracapa de “Nem Doeu”. Os dois se conheceram em 1987, no Museu Hipólito da Costa, numa seleção de candidatos para um curso de desenho animado.
Em 33 anos, tempo de amizade dos dois, chegaram até a haver momentos de pequenos desentendimentos, mas nada que colocasse em risco uma camaradagem que tem a idade de Jesus Cristo. Otto Guerra, diz Iturrusgarai, tentava ficar com as namoradas do amigo e, certa vez, quando estavam fazendo um ménage à trois, Otto teria colocado tudo a perder ao passar a mão na buda do parceiro, com quem dividia uma mulher. “Eu o perdoo. Afinal, amigo é para essas coisas”, atesta o cartunista.
Mas pouco importa, na verdade. E, como diz Iturrusgarai, quando Otto morrer – bem, isso vai ser um pouco difícil, pois sua obra fala por si só – no seu epitáfio estará escrito: “aqui jaz um escroto fofo.” Ou, para ser mais sério, se é que isso é possível, um admirador de Angeli, Glauco e Laerte, além de Millôr Fernandes, Jaguar e Tarso de Castro. Não é, definitivamente, pouca coisa. Assim como sua obra.
“Nem Doeu”, além de um passeio pela história da animação brasileira, também mostra que é preciso se distanciar do obscurantismo rindo. “Essa é a minha forma de falar sério”, declara o cineasta e quadrinista Otto Guerra. Por mais porra-louquice autopornográfica.
‘Nem Doeu’
Autor: Otto Guerra
Gênero: Autobiografia
Preço: R$ 60,00
Disponível no site da editora Mmarte