Foi há quase 52 anos, em 4 de novembro de 1969.
Carlos Marighella fechou a porta do carona, empurrou para frente o banco de frei Fernando e se acomodou atrás. Assim que sentou, os agentes da repressão – comandados pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury – puxaram a porta do velho Fusca. Aos berros, tiram Ivo e Fernando. Marighella ficou encurralado, espremido, no Volkswagen. Mancando, Fleury demorou a chegar, até que lhe dá voz de prisão, apontando uma pistola calibre 45. Desenrolam-se segundos de um silêncio agonizante.
Fiel à luta contra a ditadura, não se rende. Render-se? Até o fim tenta decidir qual seria seu destino, mas à sua maneira: jamais seria torturado de novo e muito menos delataria os camaradas de trincheiras revolucionárias. Não pronunciou uma palavra, esticou as mãos até a pasta e se abaixou para abrir o zíper amarelo. Bang, bang, bang, bang, bang! A queima-roupa, os tiros lhe atingiram as nádegas, queixo, falange do dedo arrancada fora, tórax baquiado, Marighella estava imóvel, ainda respirava.
“Para, para”, ordenou Fleury. Reviraram o guerrilheiro inimigo público número um: papeis com anotações em grego e russo, código Morse e hieroglifos, os quais nunca seriam decifrados. Recolheram dólares e cruzados novos. Marighella não andava armado, nem com um canivete, apenas não queria ser preso vivo, e se preparava para ingerir uma cápsula de cianureto quando o assassinaram à sangue-frio.
A reconstituição da morte de Carlos Marighella, extraída da biografia “Carlos Marighella – O Guerrilheiro Que Incendiou o Mundo”, escrita pelo jornalista Mário Magalhães, é um dos pontos altos do longa “Marighella”, de Wagner Moura. Filme aclamado pela crítica Devika Girish no jornal The New York Times, ovacionado no Festival de Berlim, exibido em Havana, Hong Kong, Lisboa, Paris e Nova Iorque, a produção chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, 4, como um acontecimento histórico.
Daí esse pequeno mergulho do Diário da Manhã, com a ajuda de Magalhães e seu "Guerrilheiro Que Incendiou o Mundo", nos últimos suspiros do poeta, professor, líder da Ação Libertadora Nacional (ANL), baiano, torcedor do Vitória que carregava consigo a síntese do sujeito indignado com a desigualdade social, e que no Brasil de 2021 se tornou – mais uma vez – persona non grata. Mas o leitor vai se questionar: e o que levou Marighella a virar o tipo que, ao ter o nome evocado, provoca ira naqueles que desejam ver a história esquecida para perpetuar a barbárie?
Aí está o ponto alto de ‘Marighella’, o filme: evitar a amnésia social, ou melhor, retornar a um passado que não passa. Utilizando-se da linguagem cinematográfica de ação, Moura conseguiu deixar explícito o lado humano do guerrilheiro e também evidenciou uma faceta frágil dele, a qual vem à tona em cenas em que se vê a voz de comando da ANL chorando como criança. Tudo, claro, transmitido pela atuação de Seu Jorge, onde esbanja carisma e bom-humor (como quando aparece com uma peruca no elevador e diz que “as mulheres não resistem a tamanho charme”). Difícil não rir.
Camarada de Oduvaldo Vianna Filho e Dias Gomes, Marighella é um personagem marcante na história brasileira. Entre os episódios que o longa reconstrói, está aquele em que os ouvintes da Rádio Nacional paulista, afiliada à Rede Globo, foram surpreendidos por um conteúdo revolucionário. “Atenção, atenção! Senhoras e senhores: tomamos esta emissora para transmitir a todo o povo uma mensagem de Carlos Marighella”, dizia o texto, deixando a turma de Fleury endoidada.
Não só a do delegado do Dops, é importante ressaltar, e sim a elite brasileira como um todo. Quem levaria numa boa o estudante da escola Politécnica da USP, Gilberto Belloque, falando sobre expropriar propriedades? Convém destacar também que a atuação de Bruno Gagliasso no papel do facínora baseado em Sérgio Fleury é das melhores. Nela, o público assiste incólume um sujeito cujo pensamento era a síntese do que queriam os militares com o afunilamento da repressão: “Se eu mato preto, mato vermelho também”, afirma, ao ser convocado para chefiar um esquadrão da morte.
Se a narrativa do livro é um thriller talvez só comparável em matéria de texto a Trumam Capote e Norman Mailer, expoentes do New Journalism, “Marighella” vai pela mesma direção. Os movimentos de câmera dos primeiros minutos antecederam o episódio no qual Marighella foi alvejado pela repressão num cinema do Rio de Janeiro sem ter um mandado para ele. É do início do longa, inclusive, uma das cenas mais comoventes onde Marighella toma banho com o filho e diz, em off. “Não seriam aqueles canalhas que impediriam um pai de sair à praia com o filho.”
Mas nem tudo são flores no filme. Há problemas, como ao usar a violência enquanto um instrumento para o espetáculo. Bem semelhante a “Tropa de Elite”, de 2007, sucesso de bilheteria e que foi protagonizado por Wagner Moura. No entanto, cabe lembrar que todo filme é produto de seu tempo e das escolhas estéticas que confluem para o acabamento da narrativa. Então, qual seria a maneira mais adequada para mostrar que ocorriam torturas nos porões da ditadura? Ou que os agentes da repressão eram figuras capazes dos piores horrores humanos? O debate é extenso.
Como um todo, “Marighella” é uma obra assertiva e seu maior triunfo está no fato de contar a história da ditadura sem as lentes das classes média e alta. Se existe impressão que ficou faltando a parcela de culpa do estado nos suplícios da caserna, o longa insiste em trabalhar numa lógica maniqueísta de reduzir a complexidade do personagem ao herói. Mesmo assim, é um filme que provoca e, em alguma medida, também fascina, como no momento em que Clara (Adriana Esteves) diz que é companheira de Marighella, mas não pode ser conivente com a morte iminente do esposo.
A raiva contra a ditadura, os jovens que tinham em Marighella um exemplo de resistência e outros velhos companheiros de sonhos revolucionários, alguns dos quais remanescentes do Partido Comunista, onde fora eleito deputado federal ainda no Rio capital da República, encontra na câmera trêmula uma testemunha que registra reuniões clandestinas, tiroteios, perseguições, torturas, horrores, horrores... Os últimos cinco anos da vida de Carlos Marighella, já contextualizada no pós-golpe de 1964, é a síntese da violência do estado contra populações negras – convêm lembrar o delegado vivido por Bruno Gagliasso, com seus preceitos assassinos bem definidos.
“Marighella” é para ser assistido, problematizado e assimilado a um país que insiste na ótica do mito da democracia racial. Falácia, aliás, criada pelos militares. Não é à toa que o longa-metragem chega às salas no mês da Consciência Negra.
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Obra de fôlego, com envergadura e rigor jornalístico, o texto de autoria do jornalista Mário Magalhães embasou o filme ‘Marighella’ e registra não só a instigante vida de uma das maiores personalidades brasileiras do século 20, como também pinça retratos de como os meios de comunicação estiveram a serviço dos militares, exceto o Correio da Manhã, o único matutino do Rio a dizer que Carlos Marighella havia sido espancado num cinema. A cena, inclusive, é uma das primeiras do filme.
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 784
Ano: 2012
Preço: R$ 82,90 (impresso)