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Usina de lirismo

Fabrício Carpinejar, 48, empresta as lentes de seu olhar para comentar o cotidiano, e o resultado é um tráfico de lirismo, contrabando de bom-humor e desinterdição de palavras e ideias para o leitor. Leve como toda boa crônica é, seus textos são quase como uma fotografia comportamental dos nossos hábitos. Em “Ai meu Deus, Ai Meu Jesus”, por exemplo, diz assertivamente que os homens somos irritantes. “Mas involuntários. Não têm consciência de quando incomodam e como incomodam”, escreve.

Com 47 livros na bagagem, e 20 deles premiados em láureas como o Prêmio Jabuti, Carpinejar se tornou um dos escritores contemporâneos brasileiros mais reconhecidos de norte a sul, leste e oeste, ao ponto de Millôr Fernandes afirmar que ao tentar decifrá-lo se corre o inevitável risco de ser devorado. E Luis Fernando Veríssimo, um dos cronistas mais importantes em atividade, definiu-lhe como uma “usina de lirismo”.

Carpinejar é um trabalhador da palavra. Escritor premiado, jornalista com passagens por programas de rádio e televisão, ator que interpreta suas crônicas e influenciador digital com três milhões de seguidores nas redes sociais, essa originalidade à qual Veríssimo e Millôr se referem está presente nas crônicas semanais que assina para o jornal “O Tempo”, de Minas Gerais, e nos comentários para o programa “Encontro Com Fátima Bernardes”. É famoso também pelos pequenos fragmentos escritos em guardanapo que compartilha com seus seguidores todos os dias.

Em “Depois É Nunca”, livro lançado pela Editora Record, o escritor coloca em pauta a única questão verdadeiramente filosófica e punitivamente certa da vida: a morte. Enlutada pela pandemia que ceifou vidas de pessoas queridas em quase dois anos, a escrita - carregada de saudade e esperança - trata do mal-estar coletivo até assuntos tabus, como a própria morte, ressignificando-a numa linguagem simples porém sensível.

Seu novo livro é “Coragem de Viver”, publicado pela Planeta, onde direciona o lirismo que lhe é característico para homenagear a figura materna. No ano passado, com “Colo, Por Favor”, analisou os impactos do isolamento social e pincelou crônicas sobre relacionamentos, tema sempre presente em sua obra. “O papel do cronista é tornar a memória viva dos acontecimentos mais banais. É uma repescagem do costume”, atesta o escritor, em entrevista ao DM concedida na sexta-feira, 15, por telefone.

Carpinejar abre na próxima segunda-feira, 18, o ciclo de palestras Diálogos Contemporâneos, no Teatro Goiânia, às 19h, com o tema Liberdade, Neuroses e Depressão em mundo em mutação.

A seguir, confira a íntegra do bate-papo:

Diário da Manhã - Você diz que já era poeta desde os sete anos e que, por ser filho de dois escritores, o idioma era metáfora em casa. Qual é o papel do lirismo numa época em que a liberdade é cada vez mais tolhida para dar lugar à neurose e à depressão?

Fabrício Carpinejar - Tanto que o idioma de casa era a metáfora que na época que eu cheguei à escola, tomei um susto: eu falava com figuras de linguagem. Não era uma linguagem funcional, era da comparação, do arrebatamento. Foi um choque. O lirismo traz introspecção. E você não se sente sozinho na experiência, na orfandade da dor. O grande problema de quem sofre é achar que só ele está sofrendo. E a poesia mostra que aquele sofrimento, mesmo sendo singular, é muito parecido com o dos outros.

DM - Em “Depois É Nunca”, livro lançado pela editora Record, temos a única certeza de nossas vidas em pauta: a morte. Como foi o processo de produção da obra que pinçou delicadas e comoventes narrativas sobre o luto?

Carpinejar - O “Depois É Nunca” é um livro inteiro dedicado ao luto e à perda. Entender a morte sobre diferentes perspectivas emocionais. São questão interligadas, sem título, em que eu mostro que todo luto depende de um tempo: não tem como apressá-lo. E aquele que vai sofrer mais com o luto será justamente quem não demonstra a emoção do enterro, porque ele ainda não acreditou na ausência. Nós primeiros enfrentamos as lacunas. Depois vem a raiva, a agressividade, o desconsolo e a saudade seca. As lágrimas só vão acontecer na sequência.

DM - A crônica, diz o jornalista e escritor Xico Sá, é um gênero “lindamente vagabundo”, pois o cronista não tem a pretensão do poeta ou romancista. Já dado como morto no passado e hoje expulso dos jornais pelos articulistas, qual é o lugar a ser ocupado por esse gênero textual numa sociedade hiperconectada?

Carpinejar - O papel do cronista é tornar a memória viva dos acontecimentos mais banais. É uma repescagem do costume. Ele, o cronista, devolve a você uma lembrança que você não tinha se dado conta da importância. É a grandeza do pouco, do banal. Toda crônica desenvolve uma empatia. É um gênero da primeira pessoa. Ou seja, ela é veiculada ao testemunho. Isso explica a sua capacidade de comoção. O leitor jamais ficará indiferente a um cronista. Ou ele ama ou ele odeia. Não existe purgatório nesse gênero.

DM - Como é articular poesia por meio da crônica, onde o escritor pode cometer o delito de traficar lirismo para as pessoas que não são habituadas a ler poesia?

Carpinejar - O cronista é uma extensão do poeta. É o amigo imaginário do poeta. O poeta é retraído, calado, introspectivo. O cronista é expansivo, comunicativo. Aquele que reproduz as estações e o vai e vem de uma conversa. A prosa do cronista é um retrato das imperfeições virtuosas da nossa vida. O poeta escreve para dentro. O cronista escreve para fora. O poeta pode ser, inclusive, enigmático. O cronista é absolutamente legível. O poeta é a lua, a noite, a madrugada. O cronista é o sol, o convívio, a rua.

"O cronista é uma extensão do poeta. É o amigo imaginário do poeta. O poeta é retraído, calado, introspectivo. O cronista é expansivo, comunicativo"

DM - Se antigamente o escritor guerreava contra a página em branco na máquina de escrever, com o computador, a batalha passou a ser travada no World e, como consequência, no Google Docs. Como é seu ritual de escrita, se é que você o tem?

Carpinejar - É impressionante: os poemas eu escrevo à mão sempre. E todos os meus livros escrevo não no computador, não no leptop, mas no bloco de notas do celular. Ninguém nunca saberá que eu estou escrevendo um livro. Todo mundo deve pensar que não largo o celular, que sou um viciado, um escravo das redes sociais, mas é como se fosse uma memória portátil: escrever no bloco de notas do celular me permite que eu escreva em qualquer lugar e em qualquer situação. Eu resolvo o engarrafamento das ideias.

DM - A atriz e escritora Maria Ribeiro, em “Tudo O Que Eu Sempre Quis Dizer, Mas Só Consegui Escrevendo”, traz um ponto interessante: o WhatsApp virou a carta do século 21. Qual é a relação que literatura deve ter com os aplicativos de comunicação?

Carpinejar - Quem faz sessão no WhatsApp está brigando. Aliás, eu não recomendo WhatsApp para discussão, porque você não lê o que o outro escreveu e já está antecipando a resposta, mandando outro áudio. WhatsApp apenas acentua os desentendimentos, agrava a falta de comunicação. Recomendo que, independe da tecnologia, se escreva à mão uma carta para si mesmo quando estiver com raiva, porque é uma maneira de congelar o tempo antes de cometer uma injustiça, uma distorção e até mesmo se arrepender. A escrita é um filtro das nossas impurezas. Temos dificuldade de respeitar as diferenças e confundimos entender com concordar. Você pode entender o que a pessoa disse, mas não concordar com ela. Nesse sentido, os aplicativos pioraram a convivência, já que você tem uma angústia para resolver o quanto antes. A pressão elimina as delicadezas da vida.

DM - Como o escritor deve se portar diante de ameaças autoritárias, cotidiano do Brasil desde as eleições de 2018?

Carpinejar - Nós estamos numa penúria política, em que todo o debate se reduz a dois extremos. Está na hora do eleitor não mais escolher um candidato em nome da rejeição do outro, ou seja, você não escolher alguém, só não quer que o outro seja eleito. Nosso voto não é o voto da afirmação. É um voto da recusa. A indigência cultural começa quando você se resigna a votar no menos pior. Você quer que teu país seja governado pelo menos pior?

DM - O que é melhor para um escritor: publicar aos 25, como você, ou entre os 40 e 50?

Carpinejar - Não existe regras. Porque cada um tem seu ritmo. Eu, por exemplo, publiquei meu primeiro livro aos 25. Minha mãe aos 50. Nunca saberemos qual o tempo de uma vida. Então não podemos determinar o tempo de uma outra com antecedência. Mas eu tenho noção de que o primeiro livro não é o primeiro livro. Meu primeiro livro, na verdade, foi o terceiro que eu escrevi. Os outros dois joguei fora. Foram a escada para que eu chegasse a uma estreia mais consolidada, mais serena e mais convicta.

DM - Ser premiado é perigoso para o escritor?

Carpinejar - É um perigo se o escritor escreve por vaidade. Será um incentivo se o escritor escreve pela verdade. Porque a literatura é feita da insatisfação permanente. Ou seja, você não pode nunca se dar o trabalho ou o direito de ter concluído. Você é movido pela curiosidade, pela paixão, pelo desconhecido. O escritor é um colecionador dos acasos.

Diálogos Contemporâneos

Quando: de 18 de outubro e 30 de novembro

Horário: às 19h

Onde: Teatro Goiânia, com transmissões ao vivo pelo YouTube

Serão respeitados os protocolos sanitários

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