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Apesar de a Saraiva abaixar das portas, livrarias goianas resistem ao comércio de livros digitais

A vela, ao se apagar, é sebo apenas, e quero a meia-luz, amo as serenas angras do mar dos livros, onde bebo o álcool desvendado, ou engarrafado, nas páginas de nosso vernáculo. É mais ou menos assim, com a devida vênia literária, num lirismo intrínseco à alma das tertúlias, que o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade dá por iniciado o poema “Soneto da Buquinagem”. Ah, Drummond, gracías, muchas gracías!

Se o poeta conseguiu traduzir o sentimento dos ratos de livrarias, que fazem delas um espaço sobretudo de repouso e sociabilidade, ou mesmo um refúgio aos interessados nas novidades que povoam suas prateleiras, como folhear as páginas de “Um Tempo no Inferno & Iluminações”, de Arthur Rimbaud”, e “Vento Vadio”, reunião de crônicas do escritor Antônio Maria, Drummond também pinçou a poética do sonho impresso nos livros. Mas, em meio às portas abaixadas da Saraiva no shopping Flamboyant no domingo, 5, qual será o futuro do mercado livreiro impresso?

À primeira vista, a resposta é animadora: a venda de livros superou o acumulado do ano passado em dez meses. Segundo pesquisa da Nielson junto do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, cujos dados foram contabilizados até o último dia 7 de novembro, vendeu-se 43,9 milhões de obras, ao mesmo tempo em que no ano passado se comercializaram 41,9 milhões de exemplares. Os descontos, muitos dos quais abaixo do preço de capa das editoras, levou ao aumento da procura nas plataformas online.

Goiandira Ortiz no lançamento da Livraria Leodegária, em 2017 - Foto: Prefeitura da Cidade de Goiás/ Reprodução

Como resultado prático aos tempos de hiperconectividade, a febre em adquirir livros pelo mesmo aplicativo no qual se pede um quilo de carne para fazer almoço colocou em xeque as livrarias físicas. Mesmo assim, em Goiás, é possível encontrar projetos que resistem. A Livraria Leodegária, por exemplo, foi fundada em 8 de agosto de 2018, numa homenagem à poeta Leodegária de Jesus, primeira mulher – filha de pai negro e a mãe branca - a publicar um livro em Goiás, o “Coroa de Lírios”, de 1906.

“A Livraria nasceu do desejo de três amigas professoras, que acalentavam o sonho de ter uma livraria na cidade há vários anos”, diz a professora de literatura da UFG e livreira Goiandira Ortiz, que criou a Leodegária junto com a pedagoga e professora Edina Ázara e Ebe Maria de Lima Siqueira, professora de literatura da UEG. “Ter uma livraria na Cidade de Goiás, Patrimônio Mundial, era uma contribuição à literatura e uma oportunidade de criar mais espaço de cultura, considerando que a cidade havia tido algo semelhante a uma livraria nos anos de 1910”, afirma Goiandira.

A curadoria fica por conta de Goiandira, porém é uma construção coletiva, porque a Leodegária tem a preocupação de escutar seus leitores e leitoras. Segundo a livreira, os livros escolhidos contribuem para uma formação humanística e trazem conhecimentos fundamentados na ética, no respeito à diversidade, à equidade de gêneros e raça, temas a partir dos quais é possível entender o passado para compreender o presente. “Buscamos uma bibliodiversidade, contemplamos editoras independentes e edição também do autor”, diz, destacando os desafios de escolher no meio de tantas ofertas.

“Mas o importante é ter um parâmetro que foi estabelecido na criação da livraria: oferecer aos nossos leitores livros de qualidade, que acrescentem às suas vidas e possam contribuir com a conscientização das pessoas para uma vida em uma sociedade justa, sem obscurantismo, preconceitos e discriminação”, explica Goiandira.

“Mas o importante é ter um parâmetro que foi estabelecido na criação da livraria: oferecer aos nossos leitores livros de qualidade Goiandira Ortiz, professora de literatura da UFG

Livraria é lugar de conhecimento. E não só: é também de cultura e de prazer, onde se papeia, se estabelece vínculos afetivos, além de carinhosos. Esses foram os primeiros passos para que Goiandira Ortiz, Edina Ázara e Ebe M aria de Lima Siqueira despertassem o interesse das pessoas por esse universo, trazendo-as até a livraria para que a conhecessem e se sentissem à vontade para pegar e folhear um livro.

Depois, o desafio foi conquistar a confiança das editoras e distribuidoras para consignar livros à Leodegária. Então, veio um grande percalço: a pandemia. Nesse momento, a livraria deu uma freada brusca em tudo que fazia. Foi preciso fechar e resistir. Em três anos de vida, a livraria necessita de um lastro financeiro para se segurar nesses momentos de crise. “Precisamos recorrer aos nossos leitores, às vendas pela internet por meio redes sociais, já que não temos site”, diz Goiandira.

Sufocada e com a ameaça de abaixar as portas, Goiandira, Edina e Ebe bolaram a campanha Adote a Leodegária e, nesse momento, a livraria começou a retornar seu fôlego, com a ajuda dos leitores espalhados pelo Brasil e, especialmente, os de Goiânia, que se sensibilizaram pela resistência das três. Mas a parada, garante a livreira, é dura: “um outro desafio para as livrarias de rua e independentes são os grandes portais da internet que operam com o livro muito abaixo do custo real.”

Livrarias realizam feira de publicações independentes em Goiânia no domingo  - @aredacao
Livraria Pomar, no Setor Sul: paraíso para literatura infanto-juvenil - Foto: Divulgação

Fundada em 15 de dezembro de 2017, a partir do desejo da livreira Melissa Pomi de ter um espaço às famílias que, além de literatura, oferecesse também atividades e conexão entre as pessoas em oficinas e atividades que saíssem um pouco do padrão, a Livraria Pomar é um paraíso de literatura infanto-juvenil. Ao avaliar o cenário cultural de Goiânia, a livreira percebeu que seria mais fácil o público ir até a loja para um evento do que para comprar livros. E assim, meio despretensiosamente, Melissa começou a atrair fiéis à livraria, num movimento de plantar a literatura e fazer com que os leitores voltassem por ela.

No entanto, já no início rolaram os percalços. “Foi preciso avaliar tanto os desafios de venda quanto as minhas crenças sobre o que eu gostaria de oferecer para a população”, recorda-se Melissa, que trabalha com o segmento infanto-juvenil. Ela escolheu não ter as editoras mais badaladas em seu catálogo, nem os livros mais comerciais que já estão no dia a dia das crianças e famílias, que são influenciadas pelos programas de televisão e viagens internacionais. “A ideia era proporcionar um material diferente e tão bom quanto aquele que tem no círculo comercial.”

“Na época, era um projeto inovador, mas muitas pessoas me falaram ‘poxa, você tá indo na contramão, porque a gente está vivendo um momento de avalanche digital, de tecnologia em todos os cantos da vida e você está falando de papel”, diz. Melissa era consciente: “Sempre disse e acredito que é inevitável a tecnologia, é necessária e importante, mas na primeira infância é bastante específico o contato do papel, com o livro, do passar pela página. É uma experiência sensorial, afetiva, familiar.”

"Sempre disse e acredito que é inevitável a tecnologia, é necessária e importante, mas na primeira infância é bastante específico o contato do papel, com o livro, do passar pela página. É uma experiência sensorial, afetiva, familiar"

Melissa Poma, livreira

Sim, é inegável que as livrarias virtuais têm maior praticidade se comparadas às de rua, onde o acervo se parece com um parque de diversões que despenca sobre os olhos do leitor e o deixa maravilhado. Quando a professora do Instituto Federal de Goiás (IFG) Poliana Queiroz já sabe exatamente o livro que precisa e, sobretudo, se é um específico do qual tem que obtê-lo em pouco tempo, ela considera mais fácil acessar uma das muitas lojas que estão na internet. “Mas eu prefiro as livrarias físicas.”

Pode ser uma imagem de livro e área interna
Livraria Palavrear, no Setor Universitário: espaço conta com catálogo refinado - Foto: Facebook/ Reprodução

Frequentadora de bibliotecas públicas de Goiânia durante sua formação, Poliana acredita que o espaço da livraria física sempre vai ser ligado a uma memória afetiva das estantes enfileiradas, do abrir o livro e folheá-lo aleatoriamente, da surpresa em esbarrar numa obra que sequer era possível de imaginar ser interessante até o momento de se encantar com uma publicação bem acabada desde o conteúdo até a concepção gráfica. Ou, como ela mesma diz, até mesmo observar os frequentadores de livrarias e seus interesses peculiares.

Hoje, relata, frequenta a Palavrear, localizada no Setor Leste Universitário, e a Pomar, no Setor Sul. “Esta, principalmente quando estou acompanhada dos filhos ainda crianças”, conta. Privilegiada por ter pais leitores incansáveis, ela lembra que, com a mãe, sempre estava nas bibliotecas públicas entre uma atividade e outra de suas rotinas domésticas. Já com o pai, também desde pequena, os passeios pelas livrarias eram um itinerário certo. “Talvez nem tão por acaso me tornei professora de literatura.”

Segundo Poliana, as grandes corporações, como a Amazon, engolem as pequenas livrarias, pois possuem capacidade maior de manejar o preço final para chegar até o consumidor. “Certamente, esse fator tem um impacto sobre as livrarias físicas que, honrosamente, tentam preservar o espaço de convivência com a cultura dos livros, para muito além da relação compra e venda, mas também como lugar de manutenção da memória coletiva, trocas relacionais entre os frequentadores e, principalmente, o incentivo à arte e cultura local”, reflete.

Goiandira Ortiz, a professora de literatura da UFG e livreira, sugere que o Congresso Nacional aprove o Projeto de Lei que está na casa engavetado desde 2015, o qual visa estabelecer o preço do livro. “Mas, em vez disso, vemos é o ministro Paulo Guedes falar em taxar os livros que só rico lê, segundo ele”, lamenta.

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