João do Rio flana pela alma encantadora das ruas, Agrippino Grieco atesta que o homem das letras é, queira-o ou não, o comediante das suas próprias desgraças, Murilo Mendes declama que os filósofos de sua terra são polacos vendendo a prestações, Lima Barreto diz que, numa confeitaria, certa vez, ao amigo Castro, contava as partidas que havia pregado às convicções e às respeitabilidades para poder viver. Essas são as vozes do Rio de Janeiro reunidas pelo jornalista Ruy Castro na obra “As Vozes da Metrópole - Uma Antologia do Rio dos Anos 20”, recém lançada pela Companhia das Letras.
O Rio nos anos 20 era moderno antes da Semana de Arte Moderna de 22. Nas ruas, circulando de mãos em mãos, nunca menos do que 20 jornais diários e mais um bocado de revistas semanais – só as quase pornográficas “galantes”, diz Ruy, eram pelo menos cinco. Tinham também periódicos direcionados às colônias, como a portuguesa e alemã, até publicações sindicais, a exemplo das que informavam trabalhadores metalúrgicos e barbeiros. Nesse tempo, as empresas jornalísticas não pagavam impostos, o papel era mais em conta e era fácil fazer um jornal ou revista.
Única cidade brasileira com mais de um milhão de habitantes, que exibia prédios altos em sua paisagem urbana, bondes de um lado para o outro nas avenidas, mulheres de saias curtas, carros e gente por todo lado, não havia nenhuma província naquele Brasil que há pouco tempo desvencilhava-se da realeza portuguesa vivendo numa velocidade como essa. E a gangorra social girava em torno da palavra escrita. “O Rio era a meca, a moenda, o bruaá. A cidade nacional – e internacional”, afirma o pesquisador, em “Mesma Época, Mesma Cidade”, texto que apresenta a obra.
Ruy reconstrói o cenário excitante do Rio dos anos 20 ao resgatar reportagens, poemas, contos e tiradas peçonhentas escritas por gente como Orestes Barbosa, Oswald Beresford, Théo-Filho e mais 24 personalidades do texto. Entre o Carnaval de 1919, que Nelson Rodrigues disse ser aquele em que costumes e pudores se tornaram obsoletos, até a queda da Política Café com Leite, findada com a Revolução de 1930, tudo rolou no Rio: transformação na música, nas artes visuais, na arquitetura, nas ideias, nos costumes e, como não poderia deixar de ser, no jornalismo e literatura.
É interessante olhar para a ebulição que ocorria na época com a lupa da história. Graças a “As Vozes da Metrópole”, o leitor consegue voltar ao período e entender como poetas, escritores e jornalistas protagonizaram essas transformações. A partir de gêneros literários distintos e desafiando qualquer tipo de classificação estilística, esses personagens registraram coisas como as ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres, trágicas, depravadas, puras, sem história, como fez João do Rio.
Ninguém, inclusive, brilhou mais que João. O jornalista-cronista captou os sentimentos da belle époque do Rio, conhecia na intimidade como funcionavam os meandros das ruas e das pessoas que nelas habitavam. Jornalismo na veia, escritor por ofício.
Ele estava com 39 anos, flor da idade. Saindo de seu jornal “A Pátria”, no largo da Carioca, entrou num táxi, partiu para Ipanema, onde morava. No caminho, João sentiu-se mal, pediu para o chofer lhe providenciar uma água. Ao voltar, o repórter-escritor já estava sem vida: a alma encantadora das ruas, o jornalista que tão bem reportou os costumes desse Rio moderno do início dos anos 20, o cronista que fumou ópio e fez antes dos americanos o que se chama de Jornalismo Literário sofrera um derrame.
Para organizar “As Vozes da Metrópole”, Ruy Castro, pesquisador fundamental sobre a cultura brasileira no século 20, foi atrás das primeiras e raras edições dos jornais que circulavam na época e encontrou ali o que de melhor era feito – quando, além de João do Rio, Lima Barreto, Agrippino Grieco, Murilo Mendes, entre outros, faziam as prensas trabalharem a todo vapor para imprimir as ideias que tinham pressa em sair de suas cabeças e ganharem a liberdade da publicação nas páginas de algumas das infinidades de jornais, revistas e livros que circulavam na cidade.
Organizado nas seções “frases”, “crônica e reportagem”, “poesia”, “ficção” e “provocações” – onde Ruy delicia o leitor com textos introdutórios saborosos e notas biográficas –, “As Vozes da Metrópole” mostra que a palavra escrita tem força capaz de mover uma sociedade rumo à civilização e à modernidade, o que no Brasil da bíblia e da farda parece ser uma utopia do tipo um passo nosso, quatro dela. Não é um mero saudosismo meu, e sim uma justiça: que venham evoluções tecnológicas - já teve antes rádio e TV -, a palavra jamais sairá de moda. Taí Ruy Castro para não me deixar mentir.
As Vozes da Metrópole
Organizador: Ruy Castro
Editora: Companhia das Letras
Gênero: Antologia
Preço: R$ 79,90