David Bowie, vamos dançar? Você entendeu o rock como ninguém. Tinha um olho verde e outro alternava entre um tom esverdeado e laranja. Vestindo botas vermelhas brilhantes, com saltos de mais de seis centímetros, usando blusa num tom laranja escandaloso, exibindo cabelo tingido como se fosse uma cenoura lustrosa, numa pele lisa que parecia conectar cada ponto do corpo da mesma forma que um fio de telefone nos possibilita fazer ligações, na tua vida, mudou constantemente de expressão.
Foi Major Tom, foi Ziggy Stardust, foi Aladdin Sane, foi Halloween Jack, foi Pierrot, foi The Thin White Duke... Ninguém ligado à indústria do rock percebeu o sexo de maneira tão descontraída, tão desprovida de ressentimento, tão livre do machismo, tão destituída de poder, tão engraçada, tão libertária, tão criativa. Se compôs “All The Young Dudes” para rapazes a escutarem, também escreveu “Rebel Rebel” para as meninas, mas qualquer um mais sensível poderia se identificar com as duas.
Segundo Bowie, o sexo estava em constante transmutação, daí ele cantar sobre o poder emancipatório do desejo, a forma na qual envolvia seu corpo e sua alma no palco, e é por isso que tantos jovens ao lhe ouvir encontravam em suas músicas um combustível capaz de os fazem se mover numa fase difícil, de descoberta existencial e experimentações das texturas do prazer, quando nada parecia ter sentido. Sim, Bowie nos muniu da arma do sonho, com sua doce extravagância, e nós o adorávamos assim.
“Eu não lembro exatamente como, mas com uns 12 anos eu vi David Bowie e a partir daí eu quis ser David Bowie”, diz a designer de moda Isadora Arraes, em bate-papo com o repórter. “Talvez em uma banca de jornal, em uma época que íamos comprar jornal e revistas e colecionávamos pôsteres. Acho que foi aí que vi Bowie de Ziggy usando um macacão preto brilhante, olhos arregalados”, afirma Arraes, que se identifica visualmente com o artista inglês ao ponto de colecionar biografias sobre ele.
Assim que Bowie perdeu a batalha para um câncer em estágio terminal em 2016, quando o mundo ainda se impressionava por “Blackstar”, o jornalista da revista Rolling Stone Rob Sheffield publicou “David Bowie: Uma Vida em Canções”, em que disseca a inventiva vida do camaleão do rock a partir de uma narrativa pessoal. O autor se utiliza da primeira pessoa num ensaio que revela toda a devoção de Sheffield ao músico para mostrar como Bowie se reinventou após “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars”, em 1972, LP que conta com “Five Years”.
A música, inclusive, diz que “as notícias haviam acabado de chegar, nós tínhamos cinco anos para chorar”. Era como se Bowie estivesse nos alertando sobre as pautas identitárias, ao ver nas ruas uma bicha e tratá-la como mais um pedestre. Segundo Sheffield, foi a primeira vez que a palavra apareceu com conotação afetiva. Na época, os astros do rock oficialmente gays ainda não haviam saído do armário. Por mais esquisito que pareça, Freddy Mercury negou publicamente que gostava de homens até o ano de sua morte, em 1991. Elton John casara-se com uma mulher na década de 80.
Em “Mick: The Wild Life and Mad Genius of Jagger”, biografia do líder dos Rolling Stones e ainda sem edição brasileira, o jornalista Christopher Andersen sustenta a versão que Bowie teria estendido a amizade com Jagger para a cama. Eles estavam fascinados um pelo outro. Seja como artista, seja como homens. A diferença entre eles era de apenas três anos e o camaleão, uma estrela que despontava para o sucesso.
Para Isadora Arraes, a designer de moda fã de David Bowie, seu disco favorito é “The rise and fall off Ziggy Stardust and The Spiders from Mars”, pois foi o primeiro que ela escutou. Na época, não compreendia inglês, mas gostava da sonoridade. Quando entendeu que as músicas eram costuradas umas às outras, o que tornava o disco um álbum conceitual, tudo fez sentido: “Anos depois entendi que o disco é um roteiro, que as músicas se completam e são continuação uma da história da outra. Gosto disso.”
“Vivi pelo mundo inteiro e fui embora de todo lugar”, reconheceu Bowie, em “Low”, disco lançado na semana em que completou três décadas de vida. Não por acaso, a essa altura, o cantor já não era mais Ziggy Stardust e, viciado em cocaína, buscava se recompor. Aí, como se sua criatividade fosse uma fonte inesgotável de genialidade, enfileirou uma sequência que entrou para a história como a trilogia de Berlim, com o já referido “Low”, além de “Heros” e “Lodger”. Hoje, são objetos de culto dos fãs, chegando a valer nas versões CD e vinil facilmente mais de 400 reais nos sebos.
Se o primeiro é citado como o álbum da recuperação das carreiras de pó branco que esticava, o segundo descreve uma cidade dividida pela polarização da Guerra Fria, época em que o mundo estava dividido sob o domínio capitalista, representado pelo poderio dos Estados Unidos, e socialista, cujo bloco tinha à frente a URSS. Já o terceiro critica a degradação dos valores da civilização ocidental. São desses três discos composições como “Sound And Vision”, “Be My Wife” e “A New Career In a New Town”, bem como “Heroes”, “Beauty And The Beast” e “African Night Flight.
De acordo com Rob Sheffield em “Uma Vida em Canções”, os anos 1980 foram uma década que poderia ter sido inteiramente sobre Bowie. Ele figurou entre os mais tocados da MTV com “Let´s Dance”, passando a fazer um som em sintonia com a new wave e dance music, estilos que estavam em alta no momento. Depois de anos de muita loucura, o astro voltou a escrever canções fortes no fim dos anos 1990, como “Earthling” e “Hours”, com as quais nos indicou aquilo que marcaria seus últimos anos: o amor. É o tema predominante de “The Next Day” e “Blackstar”.
Nos anos 70, quando já era conhecido como Ziggy Stardust, Bowie estabeleceu uma relação artística simbólica com o estilista japonês Kansai Yamamoto pautada pelo encanto em relação ao aspecto escultural de Yamamoto que o astro britânico levou à cultura popular. Antes disso, Ziggy Stardust já tinha usado roupas femininas em “The Man Who Sold The World”, disco que não emplacou na época de seu lançamento, em 1970. Depois, em “Hunk Dory”, álbum de 1971, Bowie aprimorou a imagem andrógina, agora com roupas que eram difíceis saber de qual guarda-roupa vieram.
“Kansai Yamamoto já era bastante famoso, foi o precursor de uma geração de estilistas japoneses que vieram subverter o status quo da moda europeia. Os dois se conheceram em um show em Nova Iorque, Bowie já era fã e usava peças do Kansai”, explica a designer de moda Isadora Arraes, cuja música favorita do cantor é “Heroes”. Embora não ache a melhor dele, a canção exerce em Arraes uma espécie de afetividade pela memória coletiva, despertando-lhe uma sensação de estar rodeada de amigos bebendo e cantando juntos. “Mesmo quando a escuto sozinha no carro, tenho sentimento de que não tô só, porque sempre me vem à memória momentos com gente que eu gosto.”
David Bowie, não era para acontecer a tua partida há 6 anos, dois dias depois de ter feito 68 anos. No entanto, por ter vivido tantas pessoas ao longo de sua carreira, você ainda está entre nós, em seus dois últimos discos e nos clássicos a partir dos quais conseguiu refletir os tempos – não necessariamente o nosso – em que foram feitos. Hoje, quando faria 75, talvez estivesse de saco cheio da indústria fonográfica ou talvez nos presenteasse com alguma obra-prima, aquelas que só você sabia fazer e que traduziam uma vida inteiramente dedicada às transmutações.