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Após 40 anos de sua morte, voz de Elis Regina ainda ressoa como um potente instrumento artístico

Nunca nos acostumamos com o talento de Elis Regina. Cantora de voz poderosa da mesma tradição que a dama do jazz Ella Fitzgerald e a rainha do blues Etta James, Elis recriava as músicas que interpretava a cada nova apresentação, como se fosse ela uma furação que passa e destrói tudo, mas uma furação digno de ser elogiado, de ser analisado, de ser compreendido: essa menina, essa mulher, essa senhora – como disse o produtor Luís Carlos Miele – está para a MPB como Edith Piaf para a chanson francesa. 

Elis continua lembrada por quem ainda sente saudade de sua voz silenciada há anos 40 anos. Era uma manhã do dia 19 de janeiro de 1982. Seu então namorado Samuel McDowell a encontrou desacordada. Tinha ingerido cocaína e bebida alcoólica no quarto do apartamento em que morava na Rua Melo Alves, nos Jardins, em São Paulo. Como ser razoável no país que abrigara Elis Regina? O sarrafo ainda está nas alturas e, desafiando alguma lei que prevê a evolução da espécie nos esportes, nas ciências e nas artes, Elis, como Ella Fitzgerald ou Etta James, só é superada por ela mesma.

Então, cantaria Elis melhor a cada dia? Para Nelson Motta, jornalista e produtor musical, sim. Para os críticos, no entanto, ela canta melhor cada vez que aparece uma nova cantora. São os mesmos que insistem desde 1964 na picuinha Elis ou Nara Leão. Por conta da série documental “O Canto Livre de Nara Leão”, dirigida por Renato Terra e já disponível no catálogo do Globoplay, essa discussão ganhou novos capítulos: Nara seria uma das “fundadoras da Música Popular Brasileira”? Ou seria Elis?  

“É assombroso”, afirma Maria Rita, cantora e filha da pimentinha, como o poeta Vinícius de Moraes definiu a mãe a respeito do temperamento forte dela. “E é muito curioso, porque agora, com essa geração ligada nas redes sociais, a galera mais jovem está descobrindo Elis de uma forma que a minha geração não teve como descobrir”, analisa a filha. “A forma como pensava tão à frente do tempo sobre sociedade, arte, mulher, feminismo... Elis é cada vez mais importante”, acredita Maria. 

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Filha de Elis, Maria afirma que mãe é "cantora fundamental" - Foto: Daryan Dornelles/ Divulgação 

E uma filha ainda pode descobrir coisas em uma mãe depois de 40 anos que a perdeu? Maria declara que sim, ainda que não saiba se encontre “novas cores ou sensações”, como pergunta o jornalista especializado em música brasileira Julio Maria, autor da biografia “Elis Regina: Nada Era Como Antes”. “É impressionante essa energia que havia ali dentro, esse amor pela vida. E, especificamente como cantora, é cada... (ela faz uma pausa um pouco longa). É sempre um impacto pra mim, algo que eu não sinto com qualquer outra. Ela está entre as maiores do mundo da história da música.”

Quando Elis surgiu cantando “Arrastão” no I Festival de Música Popular Brasileira, em 1965, o impacto foi semelhante com o samba-raiz de João Gilberto, quando mudara a música brasileira com a famosa sequência de acordes minimalistas de “Chega de Saudade”. Junto de sua voz, ou às vezes por meio dela, como diz a pesquisadora Maria Luíza Kfouri, vieram Edu Lobo, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Baden Powell. Depois, também dando um empurrãozinho, despontaram Milton Nascimento, Fernando Brant, Ivan Lins, Belchior, João Bosco e Aldir Blanc. 

Mas, tecnicamente, como explicar a Maria Rita que sua mãe é o que é por conta daqulo que Caetano Veloso chamou de “a maior de todas”, ao lado de Gal Costa? Maria dá a sua percepção: “Algo que me choca até hoje, que pode ter a ver com essas sensações e cores de sua pergunta, é a forma diferente como ela cantava a mesma letra, como usava intenções diferentes na mesma música. Parece que sempre fazia uma nova canção, como se cada vez ganhasse mais espaço dentro daquela música. A música crescia dentro dela e ela crescia dentro da música até que tudo virava uma coisa só.”

Sim, crescia tanto que – além do inquestionável talento para cantar – também possuía sensibilidade para lançar novos compositores, compreendendo as letras para praticamente reinterpretá-las, como Elis fez em “Como Nossos Pais”, por exemplo. Sem exagero, pode-se colocar ainda no currículo dela o fato de ter trazido de volta Tom Jobim à evidência após ter gravado a música “Águas de Março”, em 1972. À época, após gravar um disco com Frank Sinatra, Tom sofreu uma espécie de síndrome brasileira que ele mesmo definia como “fazer sucesso ofende”. 

Fã do cool-jazz de Miles Davis, Tom chegou a ser acusado de ter americanizado a música brasileira e o que era para ser motivo de orgulho se tornou fonte de menosprezo por parte dos colegas. Os detalhes da gravação, além dos bafafás e quiproquós, são reconstituídos minuciosamente pelo biógrafo Arthur Faria em “Elis – Uma Biografia”, obra publicada pela editora Arquipélago Editorial.

Ademais, para nos lembrar o crítico musical Zuza Homem de Mello na apresentação de “Nada Era Como Antes”, Elis tinha – como ela lhe confessou certa vez – a segurança de ser a maior cantora brasileira e, de fato, foi “perfeccionista, enfezada, intolerante”. (Com Julio Maria/ Agência Estado)

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