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Em cinco episódios, série da Globoplay reconstitui vida da cantora Nara Leão

Nara Leão tinha boca larga, sensual sorriso, tímidos olhos, joelhos que se contorciam quando ela - de minissaia - subia ao palco ou andava pelas ruas da cidade maravilhosa. Capixaba de Vitória, Nara Lofego Leão, filha caçula de um casal formado pelo advogado Jairo e pela dona Tinoca, estava com um ano quando a família fixou residência em Copacabana, no Rio de Janeiro. Porém, como escreveu Chico Buarque na contracapa de um dos discos da cantora, “Nara foi se desmusando, se desmusando...”

Se acorrentado ninguém pode amar, como ela mesma canta em “Esse Mundo é Meu”, canção do disco “Opinião de Nara” (1964), Nara nunca deixou de tornar sua voz um instrumento às causas de uma época em que a guitarra elétrica esteve sob o escrutínio de Elis Regina, Geraldo Vandré e Edu Lobo, quando debruçada na janela do hotel Danúbio, em São Paulo, junto com Caetano Veloso, indignou-se contra o movimento que estaria colocando a música brasileira na mira do imperialismo norte-americano.

Sim, ninguém podia com Nara. Primeiro, ela achava uma piada a pauta da Frente Ampla. Depois, até os bossanovistas, que se reuniram em 1957 no apartamento da cantora para as primeiras reuniões que acabaram por gestar a fusão entre jazz e samba, não lhe poupavam críticas. “Enquanto Roberto Carlos ia a todos os programas, todos os dias, o pessoal da música brasileira, talvez por comodismo, não vai. Existe até certo preconceito”, afirmou à Revista Civilização Brasileira, editada por Ênio Silveira.

Será que ela tem na fala, mais do que um charme, um canhão? Para o poeta Carlos Drummond de Andrade, sim. Politizada, enturmada com artistas ligados ao cinema novo e fora das balelas etilistas defendidas pelos cancioneiros ligados à zona sul, Nara não demorou até cortar o cordão umbilical que a ligava à bossa nova, acabando por renegar qualquer menção ao rótulo de musa do movimento. Quase viu o sol nascer quadrado, por exemplo, quando disse que as Forças Armadas não serviam para nada.

O ano era 1966. Céu nublado, previsão de trovoadas. Nara abriu o jogo numa entrevista explosiva ao jornal Diário da Notícias. A essa altura, namorava o cineasta Ruy Guerra, ligado à esquerda. Não por acaso, sem meias palavras, começou a criticar o som da bossa nova. “Quero o samba puro, que tem muito mais a dizer, que é a expressão do povo, e não uma coisa feita de um grupinho para outro grupinho” declarou, criticando a “música de apartamento” feita “para dois ou três intelectuais”.

Nara Leão clicada pelo fotógrafo Kuroro Lucifer

Deu um danado quiproquó. Além da ameaça de ir parar no xilindró, recebendo palavras solidárias de Ferreira Gullar, Carlos de Oliveira e Rubem Braga, Nara dividiu a música brasileira. Segundo o pesquisador Ruy Castro em “Chega de Saudade”, entre quem se assumia alienado, estava Ronaldo Bôscoli, Tom Jobim e Aloysio de Oliveira. Do outro lado, os engajados, com Carlinhos Lyra, Sergio Ricardo e Nara.

Em 67, já estouvadinha, como diz o biógrafo Tom Cardoso, Nara comparou a passeata contra a guitarra elétrica com “organistas medievais fazendo passeata contra o piano”. Ela descrevia a cena para o namorado da época, Cacá Diegues, em tom de perplexidade. Ao lado de Diegues, a cantora participa ativamente das manifestações públicas contra a ditadura, que em 68 seria endurecida por meio do AI-5.

Com a temperatura política lá nas alturas, Nara publicara o afrontoso texto “É Preciso Não Cantar” no jornal Última Hora na coluna “Roda Viva”, de Nelson Motta, dias após o assassinato do estudante Édson Luís. Em agosto, lança o disco sem título. O repertório, assim como a harmonia, foi escolhido pelo arranjador Rogério Duprat, demonstrando afinidade com o movimento tropicalista. Caetano está nele com “Lindonéia” e Torquato Neto assina “Deus Vos Salve Essa Casa Santa” e “Mamãe Coragem”.

Ao jornalista Tarso de Castro, numa entrevista publicada no jornal O Pasquim, a cantora diz que sua carreira musical está encerrada, mas não sem antes lançar o LP “Coisas do Mundo”, com faixas que – além do samba-título composto por Paulinho da Viola – traz releituras de Caetano Veloso, Jards Macalé e Sidnei Miller. Desde que a ditadura fechara o cerco contra a sociedade civil, Nara diminuiu os shows pelo país.

Morando em Paris, no início da década de 1970, grava para a Philips um disco duplo com 24 músicas do período da bossa nova. Feito apenas com violão e piano, com a participação da cantora e violonista Tuca, o LP ganhou arranjos de cordas de Luis Eça e Rogério Duprat. A obra foi lançada com o título “Dez Anos Depois”.

Nos anos seguintes, ela dedica-se a passar no vestibular para psicologia na PUC-RJ, separa-se de Cacá Diegues, homenageia a obra de Roberto e Erasmo Carlos, tem aula de violão, lança discos com participação de Fagner e Fausto Nilo, descobre um tumor no cérebro, cuida da saúde, não se deixa abalar, apresenta-se em teatro, melhora e sai das luzes do palco aos 47 anos... Fosse viva, Nara Leão completaria 80 no próximo dia 19. Mas Nara, querida, esse mundo continua sendo inteiramente teu.

O Canto Livre de Nara Leão

Direção: Ricardo Terra

Episódios: Cinco

Gênero: Documentário

Disponível na Globoplay

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