A mulher brasileira jamais seria a mesma após a entrevista de Leila Diniz ao semanário O Pasquim. Com língua afiada e sem tempo para meias palavras, Leila aparece na primeira página rindo e está com uma toalha enrolada à cabeça, chocando a sociedade ao falar palavrões (que o jornalista Tarso de Castro teve a ideia de substituir por asteriscos, já que era proibido usar as palavras “merda”, “bunda” e “porrada”) e demostra uma visão avançada para os padrões da época sobre sexo. “Eu posso amar uma pessoa e ir para a cama com outra. Já aconteceu comigo”, disse à patota.
Estamos em 1969. Clima instável, tempestade à vista. Médici, o general da ocasião que ocupava a presidência, chegou para inaugurar o período que os historiadores chamam de “anos de chumbo” tamanha a quantidade de cadáveres empilhados nos porões do regime militar. Contudo, para dizer que não falei das flores, no mês seguinte à posse do general linha-dura, teve Leila em O Pasquim, obrigado. Depois daquele 20 de novembro, o jornalismo e a sociedade brasileira nunca mais se recuperaram.
Tampouco a cineasta Ana Maria Magalhães, que homenageia a atriz, sua grande amiga, no documentário “Já Que Ninguém Me Tira Pra Dançar”, filme que fica disponível gratuitamente neste sábado, 15, e domingo, 16, no streaming Itaú Cultural Play. Uma carta na qual Ana Maria responde Leila, o longa recorda a postura da atriz, à frente de seu tempo, além da persona cativante e profissional talentosa que atuou na comédia “Todas as Mulheres do Mundo”, clássico dirigido pelo cineasta Domingos de Oliveira, e no drama “Fome de Amor”, do cinemanovista Nelson Pereira dos Santos.
O longa possui produção, roteiro e direção assinados por Ana Maria e contou com apoio do Itaú Cultural. As entrevistas e originais, de 1982, ganham a companhia de gravações novas, com imagens tratadas, digitalizadas e remasterizadas. “Eu respondo falando de hoje, de como tá tudo hoje, acho que a Leila tem muito a dizer para as novas gerações, sobretudo quando se compara com esse governo, com essa situação de agora”, diz a diretora ao Diário da Manhã, por telefone, na sexta-feira, 14.
Exemplo de cinema orgânico, traçando paralelo entre o Brasil fardado e a república neopentecostal de hoje, a memória de Leila Diniz é evocada por meio de depoimentos de amigas e amigos, ex-companheiros, trechos de filmes em que ela atuou, fotos e arquivo impresso. É uma narrativa costurada para quem não teve chance de a conhecer. Também serve como testemunho, cheio de saudade e boas lembranças, para quem gozou do privilégio de tê-la por perto em sua breve passagem entre nós, interrompida num desastre aéreo em 1972, aos 27 anos, na Índia.
“Leila falava assim: o mais legal da vida é o amor, afeto e carinho. Então esse legado acho que é um contravapor ao que a gente está vivendo, que é o ódio, a hipocrisia”, afirma Ana, acrescentando que a atriz tinha uma atitude amorosa com homens, mulheres e amigos. “Eu acho que as novas gerações têm muito o que aprender com ela, sobretudo com o feminismo de Leila, que não tinha nada contra homem. Queria melhorar as relações e não combater o masculino, como se fosse uma maneira de dizer ‘vamos melhorar essa relação, vamos fazer uma coisa mais viva, mais humana.’”
O mais interessante, nas palavras de seu biógrafo em “Uma Revolução na Praia”, é que Leila não tinha frase-feita, palavra de ordem, evitava colocar o homem como inimigo das conquistas feministas. Após o bate-papo com a macharada branca de O Pasquim, falta de diversidade que seria problematizada hoje em dia até na revista Playboy, Leila apareceu grávida, com o barrigão de fora, na praia, transformando a moda e os modos.
Leila teve um currículo preenchido por expressivas realizações artísticas, porém o que ficou na memória coletiva foi contribuição que deixou à história do comportamento feminino. Espontânea e alegre, adepta da máxima que é preciso se mover pela liberdade, a atriz contribuiu para criar um novo papel à mulher na encaretada sociedade brasileira da ditadura, como demonstra o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos no perfil-biográfico de Leila Diniz lançado pela Companhia das Letras, em 2008.
Segundo Ferreira dos Santos, agora num depoimento ao jornal francês Le Monde, em reportagem publicada em dezembro de 2019, a entrevista ao Pasquim foi uma revolução ao estilo Grito do Ipiranga. “Esse bate-papo marcou o início da revolução sexual no Brasil”, sentenciou o biógrafo, autor de “Leila Diniz, Uma Revolução na Praia”. Com perguntas indiscretas dos três jornalistas “machistas e provocadores”, a atriz mais popular do momento, como destacou o repórter Bruno Meyerfeld, falou sobre a intimidade sem pudores.
Para Ana Maria Magalhães, no Brasil, a alegria não é levada a sério. “Lembra da esquerda festiva?”, pergunta ela ao repórter, respondendo na sequência: “Você não pode se divertir. Os artistas não tem direito a isso, mas Leila não ligava para essas bobagens e passava por cima disso. Quando você a via trabalhando, desmanchava um pouco essa imagem de que ela era leviana que se criou em torno dela.”
Apesar da transgressão que encampou nos costumes, a cineasta Ana Maria garante que Leila era uma pessoa que não se levava a sério. “Não tinha essa coisa que tem hoje, do artista se achar o máximo. Leila não ligava a mínima pra isso e, embora tivesse todas as capas de revistas, não funcionava em função do sucesso”, conta a diretora, que guarda com carinho as “conversas profundas que nos ajudavam a melhorar, a se desenvolver” que tinha com a amiga. “Trabalhava com as melhores expectativas sobre o outro. Então, a pessoa queria ser melhor que poderia ser com ela.”
Mas os militares, conservadores e adeptos da “família tradicional brasileira”, não demoraram a fazer pressão. Suas declarações ao Pasquim, cuja entrevista o jornalista Sérgio Cabral já declarou não ter sido guardada pela patota, desagradaram os fardados. Após o bate-papo, Leila perdeu o contrato com a Globo e chegara a ter seu nome associado às medidas de censura à imprensa em vigor, batizadas de “Decreto Leila Diniz”.
Tudo isso, é importante ressaltar, antes de ter posado de biquini na praia de Ipanema, numa imagem que se tornou icônica e anos seguintes se popularizou em capas de revistas, como a da atriz Fernanda Lima grávida, com o barrigão à mostra, uma mão sobre ele e a outra tampando os seios, na capa da Rolling Stone, em 2008. Era a imagem do empoderamento.
Obra para preservar a memória de um país desmemoriado, padecendo de amnésia social, “Já Que Ninguém Me Tira Pra Dançar”, mostra uma artista se movimentando e é aí que se percebe o atraso que a ditadura promoveu em termos de costume e liberdade sexual. Mas Leila ficou, está viva, em cada esquina em que se grita pelas liberdades, nas músicas de Rita Lee ou Erasmo Carlos. “O que ficou? As grávidas de biquíni, por exemplo. A Leila quebrou esse tabu, pra sempre. Certos avanços dela vieram para ficar. Relação com os homens, de liberdade, de autonomia”, diz Ana Maria.