Neil Young sopra a gaita. Como se fosse um músico bêbado de bourbon passeando pelas notas no Velho Oeste dos Estados Unidos, Neil está em sintonia com as baladas rurais que ele mescla desde os anos 1970 com o country rock. Seu disco “Harvest”, ou colheita, clássico de 1972, caiu nas graças dos fãs ao ponto de o artista agora lançar um álbum chamado “Barn”, em tradução, algo como celeiro: estar num celeiro, inclusive, é o que sentimos assim que escutamos os acordes do violão acompanharem a voz.
Na última década ou década e meia, não era tão difícil perceber o que estava por vir quando Neil se aventurava a lançar um novo disco. Sabíamos que haveria hits doces e apaixonados, canções compostas para serem escutadas por casais apaixonados, a exemplo da bela “Harvest Moon” e seus versos cujo eu-lírico nos confessava a vontade de dançar lentamente colado ao corpo da mulher amada, além da nostalgia sobre a infância no Canadá e as que demonstravam uma fúria contra a cretinice humana que leva o planeta marchando rumo ao precipício da estupidez.
A lendária guitarra de Neil nunca para de tocar. Por meio de notas uivantes, ele aumenta o volume e faz o instrumento soar como se fosse uma pintura realista em que um espírito de porco atira nela areia, manchando a tela e a transformando-a numa espécie de garrancho elegante. É entre acordes, riffs e letras coerentes que a música do artista canadense se cristaliza, se metamorfoseia e se empodera: serve de exemplo o disco “After The Gold Rush”, em que personifica o fim do sonho hippie dos anos 60.
Voz em sintonia com as preocupações da vida contemporânea, Neil pede para o Spotify retirar todas as suas músicas da plataforma, pois se preocupou com podcast que espalha informações falsas sobre a campanha de vacinação contra a covid-19. “Eles podem ter Rogan ou Young. Não os dois”, diz o músico em carta, segundo o jornal Wall Street Journal, que já se enfureceu com Donald Trump. O motivo? Uso de suas músicas para fins com os quais Neil Young não compactuava. Trump faria o quê mais?
Nem preciso dizer, acredito eu, que fins eram esses, não é? A verdade é que, de alguma forma ou outra, todos esses elementos estiveram presentes em “Barn”, o bom último disco de Young, mas a diferença fundamental é uma versão reconstruída da banda Crazy Horse – a qual estou escutando no último volume permitido pelo fone enfiado em meus tímpanos –, com o Nils Lofgren substituindo o já aposentado Frank “Poncho” Sampedro. E, como imaginado, não poderia ser um retorno melhor, mais triunfal, roqueiro: é um álbum que tem tudo o que precisamos para seguir em frente.
Sim, a música é necessidade vital da existência. Neil Young parece saber disso. Em “Barn”, Neil está mais caipira que nunca, enrolando – como bem percebeu o jornalista Ivan Finotti – a fonética do ‘r’ de cada palavra, tal como é possível notar quando canta os vocábulos “hair”, “bun” ou “togheter”. A sonoridade é semelhante a encontrar um amigo que você não via há desde que o pesadelo pandêmico se instalou entre nós e fica então proseando com o cara despreocupadamente enquanto a vida corre lá fora.
“Barn” abre com o folk sensível “Song Of The Seasons”, que não seria exagero cravar já como um dos clássicos de gaita de Neil, do mesmo nível de “Heart Of Gold”, um hino de “Harvest”. Mas na faixa seguinte, “Heading West”, o músico manda ver uma pauleira à moda da Crazy Horse, algo que poderia ser tirado do LP “Zuma”, numa letra nostálgica sobre os tempos em que o artista matava o tempo nos brilhos de trem, como se aqueles dias fossem “bons dias”, o que ele trata de cantar no refrão da canção.
Se o que dá o tom em “Change Ain´t Never Come” é um riff de gaita f..., numa condução harmônica bluseira, “Canerican” mostra que o baterista Ralph Molina ainda dá conta de descer o braço nos contratempos. Neil se diverte, fala sobre o sentimento de pertencimento aos EUA (“eu sou americano, americano é o que sou. Nasci no Canadá, vim para o sul criar uma banda”), onde ele vive desde os 20 anos, para depois – como o tempo inteiro é em “Barn” – tocar a calma “Shape of You” uma canção influenciada pela levada eternizada por Hank Williams, mestre do country.
“They Might Be Lost”, “Human Race” e “Tublin´Thru The Yeards” vão se alternando entre músicas lentas e outras mais aceleradas, mais ou menos o que Neil já havia feito em “Rust Never Sleeps”, mas só que nele eram as baladas no lado A e as mais rápidas ficavam no lado B do disco. A magia de “Barn” é que Neil Young e a Crazy Horse tocam juntos, ao vivo, e não cada um separado para depois juntar tudo, como é normalmente feito em estúdios: assim é mais fácil corrigir prováveis erros.
Mas quem disse que Neil está preocupado com isso? Como se estivéssemos escutando “Cortez The Killer, de “Zuma”, “Welcome Back” soa escorregadia e “Don´t Forget Love” é dessas músicas para o sujeito lembrar da pessoa amada, sem vergonha de dizer “eu te amo” e “não se esquece que eu gosto de você”. “Barn” fecha assim como começou: com a delicadeza, a calmaria e a beleza expressada pela boa música.
Aos fãs: a edição de luxo, fortuna que só os apaixonados tem coragem de desembolsar, contará com um documentário de mais de uma hora sobre a produção do disco. É quase como se entrássemos no celeiro com uma webcam e ali víssemos Neil Young pedindo uma cerveja enquanto afina sua guitarra. À luz de roqueiros medalhões que já penduraram as guitarras em suas paredes e anunciaram suas aposentadorias, é reconfortante ver Neil a mil por hora no estúdio. Mais celeiro, por favor.