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Arnaldo Jabor conseguiu adaptar como ninguém clássicos de Nelson Rodrigues para o cinema

Arnaldo Jabor levou o universo rodrigueano para a tela grande como ninguém. Entre os excessos, o pecado, o moralismo, o melodrama, os adultérios, as estridências e a cafajestagem, conseguiu interpretar com perfeição textos como “Toda Nudez Será Castigada” e “O Casamento”, clássicos absolutos do teatro brasileiro escritos por Nelson Rodrigues que Jabor transformou em obras-primas do nosso cinema, estabelecendo um casamento entre o Cinema Novo – movimento do qual participou em sua segunda geração – e a pornochanchada, gênero de sucesso nos anos 1970.

Cineasta, jornalista e cronista, dono de olhar provocativo e por vezes reacionário sobre a vida pública brasileira, Arnaldo Jabor saiu de cena na madrugada desta terça-feira, 15, em São Paulo. Ele tinha completado 81 anos em 12 de dezembro do ano passado, cinco dias antes de ser internado em decorrência de um acidente vascular cerebral (AVC) isquêmico, no Hospital Sírio-Libanês. Em comunicado, o hospital declarou que Jabor chegou a ser submetido a procedimento vascular para desobstrução de coágulo, e em outra nota afirmava que o artista estava consciente.

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'Opinião Pública': longa, lançado em 1967, é um primoroso exemplo de cinema-direito

O reconhecimento veio no final dos anos 1960, com o documentário “Opinião Pública” (1970), exemplo de cinema-direto em que retrata a mentalidade da classe média brasileira durante os primeiros anos da ditadura civil-militar. Em 1970, sob a mordaça da censura imposta pelo regime fardado, Jabor mudou os caminhos e optara por filmes que abusam da metáfora, como “Pindorama” (1970), onde há um excesso de barroquismo admitido, anos depois, pelo próprio cineasta em entrevistas.

Não à toa, como se supunha, o filme fracassou e Walter Hugo Khouri, à época presidente da Companhia Vera Cruz e responsável pela produção da obra, chateou-se. Jabor, no entanto, jamais se envergonhou de ter levado um pé na bunda do sucesso, até acreditava haver nisso uma espécie esquisita de charme, achava ser possível sepultar um modus operandi para fazer filmes que estava com os dias contados. Mas, com o currículo manchado por um elegante fiasco, veio a dificuldade de convencer alguém a lhe dar grana: quem teria coragem de endinheirar Jabor?

Como se o cinema fosse uma arte para a qual é imprescindível alfinetar o comportamento de um país reprimido, o cineasta faz um clássico: “Toda Nudez Será Castigada”, produzido a partir do texto antológico de Nelson Rodrigues, é uma crítica certeira à moral burguesa. Arnaldo Jabor ressurgia. E bem. Valeu esperar: além de levar os prêmios de melhor direção no Festival de Berlim e melhor filme em Brasília, somando-se a boa recepção pelo público e pela crítica, era difícil não ficar chocado com Geni, personagem de Darlene Glória, e Herculano, papel de Paulo Porto.

Em cena, o conservador Herculano jura para o filho que jamais fará sexo de novo, muito menos se apaixonar. Até que o sujeito conhece, com a benção do irmão, a prostituta Geni. Ficar em beber? Sem fumar? Deixar de transar? Amando que estava, o homem decide casar-se, mas sua família não faz gosto do matrimônio e sucedem-se problemas, como o filho Serginho sair na porrada no bar e ir ao xilindró. Na prisão, estupram-lhe e, uma vez fora da cadeia, torna-se amante de Geni. Tudo para vingar-se do pai, sujeito desprovido de palavra. Ela mata-se. Herculano fica com uma fita.

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Geni e Herculano, em 'Toda Nudez Será Castigada': filme é uma certeira e ácida crítica aos costumes da burguesia brasileira nos anos 1970

Foi, por óbvio, um escândalo. Em 1975, dois anos depois de “Toda Nudez Será Castigada”, Jabor insiste com “O Casamento” em cutucar a burguesia, porém flertando com o grotesco e o histérico, sem, todavia, obter o sucesso do longa-metragem anterior. A mudança mais abrupta, em termos estéticos, se deu com “Tudo Bem” (1978), onde dá por iniciada a chamada “Trilogia do Apartamento”, investigando novamente as contradições da sociedade brasileira, mas dessa vez utilizando-se de uma sutil e fina ironia, especialmente em relação às famílias vítimas do milagre econômico.

Assim como nos outros dois filmes, Jabor aposta no aspecto quixotesco, ao apresentar Juarez, interpretado por Paulo Gracindo, típico pai de família da classe média, e Elvira, papel de Fernanda Montenegro, desacreditada da impotência do marido e crente que ele tinha uma amante. “Devo a você essa confirmação de que eu poderia fazer cinema. Tem uma hora na vida que a gente tem que partir. Mas isso não é consolo. Jabor, querido, que criador, que homem de cultura você... Não vou dizer ‘foi’. Você é'”, disse Fernanda ao Globo, em cujo veículo, inclusive, Jabor escreveu até 2017.

Em 1980, com “Eu Te Amo”, o cineasta criou um filme intimista e sexual de um casal, vivido por Sônia Braga e Paulo César Pereio. É desse filme, aliás, a antológica frase proferida por Pereio para Braga: “cala a boca e transa, porra!” A grande sacada da obra é justamente mostrar a falência de um industrial, antecipando aquilo que se seria a marca econômica da “década perdida”, que seriam os anos 1980. Aqui, evidencia-se a troca de Arnaldo Jabor da tragédia tosca para um cinema dramático, o que eleva à condição de obra-prima seis anos depois, com "Eu Sei Que Vou Te Amar".

Na trama, estrelada por Fernanda Torres e Thales Pan Chacon, Jabor apresenta um diálogo escrito por ele mesmo entre uma mulher e um homem que discutem a relação, ainda que os dois já estivessem separados. Foi com esse filme, hoje um clássico do nosso cinema, que Torres se consagrou ao levar o troféu de melhor atriz no Festival de Cannes em 1986, com 20 anos. “Arnaldo Jabor era um provocador irônico, lúcido e apaixonado. Tenho e terei saudades da sua presença majestosa”, elogiou a atriz, num post publicado no Instagram acompanhado por uma foto de cena do filme.

Em 2010, já com quase duas décadas de carreira cinematográfica interrompida para enveredar pela mina de ouro do jornalismo, Jabor voltou à direção com “A Suprema Felicidade”, filme em tom de memória, mas não pessoal, e sim uma trajetória inventada com a qual Jabor pinça um retrato do Rio de Janeiro da sua infância. Carioca nascido em 1940, Arnaldo Jabor era filho de um oficial da Aeronáutica e de uma dona de casa. Junto dele, parte o delírio irresponsável, ora estridente, de um jornalista e cineasta que ousou pensar o Brasil.

Ele deixou três ex-mulheres e duas filhas. (Com informações de Ubiratan Brasil, da Agência Estado)

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