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Betty Davis uniu feminismo e liberdade sexual em groove funkeado

Pela primeira vez em 77 anos, a cantora norte-americana Betty Davis errou o tempo de seu compasso funkeado. Lenda da black music, rainha do soul e diva do R&B, a artista criou uma obra por anos subestimada a partir de ideias caducas de críticos tão bizarros quanto o que saia do batuque de suas máquinas e teve a qualidade de sua música finalmente reavaliada antes de nos deixar nesta quarta-feira, 9. Davis misturou feminismo, antirracismo e liberdade sexual, sob a benção da psicodelia que contagiou Nova Iorque no final dos anos 1960, com muito ácido e com muita lisergia.

A morte da cantora foi informada à revista Rolling Stone por Danielle Maggio, amiga de Davis. Segundo Amie Downs, diretora de comunicação de Allegny, condado onde a artista residia, o motivo da partida foi causas naturais. “É com grande tristeza que compartilho a notícia do falecimento de Betty Davis, uma influenciadora musical multitalentosa e estrela do rock, cantora, compositora e ícone da moda. Em momento a ser anunciado, faremos uma homenagem à sua personalidade bonita, ousada e impetuosa. Hoje nós apreciamos sua memória”, afirmou Connie Portis.  

Maior parte da obra de Davis foi criada entre 1964 e 1975 - Foto: Robert Brenner/ Divulgação

Nascida em 1945, a maior parte da obra de Davis ganhou vida entre 1964 e 1975, porém a grandeza, bem como a força poética do seu eu-lírico transgressor e do seu suingue dançante, só foi dimensionada anos depois. Ela lançou o primeiro disco como Betty Mabry, seu nome de batismo – “Get Ready For Betty”, de 1964, era o prenúncio do som que gravaria nos ouvidos de toda uma geração. Figura marcante na cena musical nova-iorquina no final dos anos 60, escreveu a canção "Uptown (To Harlem)”, que está no documentário “Summer Of Soul”, candidato ao Oscar.

Para o artista visual e DJ goiano Mario Cavalcanti, que conheceu a obra da cantora por meio do irmão que morava nos Estados Unidos e convivera com um jornalista-âncora contemporâneo a Miles Davis, o maior legado deixado por Betty Davis é sua afirmação pelo groove dançante, em cujos discos “Betty Davis” (1973), “They Say I´m Different” (1974) e “Nasty Girl” (1975) atinge o ponto máximo de uma música que faz parte da trilha sonora de uma época de luta pelos direitos civis. “Não era só a mulher de Miles Davis. É impossível você imaginar a Betty Davis assim”, analisa Cavalcanti ao DM.

Em seus versos, com perspectiva feminista e falando sobre empoderamento das mulheres, abordou o sexo numa ótica que até então era privilégio dos homens. É o que se percebe, por exemplo, em “Shoo-B-Doop And Cop Him: “Manas, eu não consigo evitar/ Vou degustá-lo até o sol nascer/ E quando minhas pernas ficarem bambas/ Elas vão saber, e nós ainda estaremos mandando ver.” O último disco da cantora, “Is It Love or Desire” (1976), foi engavetado pela gravadora, sendo lançado apenas em 2009.

Miles Davis – Filles De Kilimanjaro (1969, Vinyl) - Discogs
Betty Davis capa de clássico do trompetista lançado em 1969, com quem foi casado no final dos anos 1960

“Eu destruí minha carreira porque me recusei a me comprometer”, confessou Davis ao documentarista Phil Cox no filme “Betty - They Say I'm Different”, de 2017. Após se casar com Davis em 1968 e gravar com músicos como Herbie Hancock, ícone do jazz moderno, enfrentou problemas com o autor de “Kind Of Blue” na Justiça, chegando a ser taxada por ele como adúltera. Além das questões matrimoniais, esse foi um período complicado: seu pai morreu e sintomas de uma possível esquizofrenia começaram a aparecer. Largou a carreira, renegando até o mesmo o rádio por 30 anos.

Como mostra “They Say I'm Different”, foi Davis quem apresentou Miles a Hendrix e, desse contato, o trompetista resolveu enveredar pelo rock, gênero que era até o momento alvo de repúdio por parte de jazzistas, mas com o qual flertou nos discos clássicos, “In a Silent Way" (1968) e "Bitches Brew" (1970). A companheira aparece ainda na capa do LP “Filles de Kilimanjaro” (1969), outra obra-prima. Ela fez o marido rever sua estética ao deixar de lado os ternos para se vestir com peças da moda africana. O próprio Miles dá o braço a torcer na autobiografia e reconhece isso.

Embora tenha mantido o sobrenome do trompetista, Davis nunca quis ficar à sombra do ex-marido. “Eu queria que minha música fosse levada a sério”, afirmou ela, anos mais tarde, ao ser questionada sobre esses malucos anos 60. “Eu não iria me transformar em uma Yoko Ono ou uma Linda McCartney.” Nos anos 70, já separada, gravou suas músicas mais celebradas, com letras sensuais, suingue lascivo e estilo de performance que antecipou em pelo menos uma década aquilo que se tornaria popular com Madonna e Prince, rosnando e rugindo um erotismo excitante, era um tesão!

Em 1975, no melhor momento da carreira, Betty Davis lançou o LP “Nasty Girl”. Junto com um repertório assertivo, o disco conta também com a faixa “You and I”, uma delicada balada escrita em parceria com Miles Davis e arranjada por Gil Evans. “Eu te amo eu te amo eu te amo/ mas é tão difícil para mim ser eu/ Eu gostaria de poder te dar/ Eu estaria livre eu estaria livre eu estaria livre.” No entanto, como um todo, o disco não foi bem recebido, compreendido e assimilado. “Quando me disseram que acabou, eu simplesmente aceitei”, declarou a artista ao New York Times.

“Pela potência, pela transgressão, pelo comportamento, pelo pioneirismo, além da subversão, ela se tornou pouco lembrada”, afirma Mario Cavalcanti, o DJ e artista visual fã de Betty Davis. “Minha música preferida dela, cara, puta que pariu, tem várias, mas eu acho que a primeira que ouvi é uma que me causou um impacto muito grande: “Nast Girl”.  Sempre me recordo dela, sempre mexe comigo quando ouço, porque foi a primeira que ouvi dela, inclusive foi a que meu irmão apresentou.”

Mario conta ainda que esse irmão fazia um programa de rádio junto com o Erick, o âncora-jornalista negro, que era do círculo de amizades daquela Nova Iorque dos artistas, entre os anos 1960 e 1970. "Conheceu essa galera toda, Miles Davis, Betty Davis, John Lennon, Yoko Ono, enfim era desse rolê. E ele que apresentou a Betty para meu irmão e meu irmão me aplicou. Ele fez um programa de música brasileira nessa rádio”, arremata o DJ.

Com Betty Davis, desaparece uma cantora transgressora capaz de dar voz a versos como “Você pode chamá-la de modinha/ Superficial/ Prostituta elegante/ Mas quando ela te deixar porque não precisa mais de você/ E se sentir um otário/ Não a chame de vagabunda”, que está na música “Don´t Call Her No Tramp”. À frente de seu tempo, atentada a moda e percursora do fusion jazz, o legado de Betty Davis é imensurável. Estamos ainda tristes.

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