Queira ou não, os ecos da Semana de Arte Moderna se fizeram ampliados pelo Brasil por meio de textos em suplementos literários publicados nos jornais, esses mesmos agora emagrecidos pelas mudanças em nossos hábitos de leitura, que circularam as transformações estéticas, as efervescências da Era Vargas (1930-45) e o êxtase pela modernização da linguagem, propiciando, ouso dizer, o período de maior criatividade da prosa e poesia brasileiras: em Goiás, José J. Veiga e Bernardo Élis; nas Minas Gerais, ainda nos anos 20, Carlos Drummond de Andrade; no Paraná, duas décadas depois, Dalton Trevisan; sem falar de Rubem Braga e sua crônica.
Nesta matéria, a terceira da série sobre o centenário da Semana de Arte Moderna de 22, o Diário da Manhã apresenta o impacto da transgressão proposta por Oswald de Andrade, Graça Aranha, Guilherme de Almeida, Mário de Andrade, Menotti Del Picchia, Renato de Almeida, Ronald de Carvalho, Tácito de Almeida e Manuel Bandeira que, com a leitura do poema “Os Sapos”, trouxe para o outro lado do Atlântico as mudanças já vislumbradas pelo poema “A Terra Desolada”, de T.S. Eliot, e o catatau “Ulysses”, lançado pelo romancista James Joyce no mesmo ano da Semana.
No universo da literatura, cabe dizer, o século 20 foi caracterizado pelo abandono do realismo estabelecido após a Revolução Industrial, cuja obra de Honoré de Balzac e Gustave Flaubert se fortalece retrato do que era escrito no período nos salões da burguesia, para dar lugar às novidades em termos de formato, gênero, estilo, construção narrativa, pontos de vista e alternância do foco de quem conta a história. Os romancistas também encontraram diferentes maneiras para oferecer ao leitor instrumentos que lhe proporcionassem maior compreensão do mundo e da sociedade.
Lá fora e muito menos aqui, o modernismo não viveu apenas do fluxo de consciência joyceano tampouco da memória encucada pelo francês Marcel Proust no romance “Em Busca do Tempo Perdido”. Autores que tinham uma prosa convencional, como o alemão Thomas Mann, despontaram com romances de formação ou ritos de passagem, a exemplo da novela “A Morte em Veneza”, publicada em 1914, e dez anos depois a partir de sua obra-prima “A Montanha Mágica”. Como uma espécie de perdidos em meio à guerra, houve ainda Ernest Hemingway, Scott Fitzgerald e Henry Miller.
Em “As Vozes da Metrópole”, obra lançada pela Companhia das Letras em dezembro passado, o escritor e jornalista Ruy Castro aventa a possibilidade de o Rio de Janeiro já ser uma cidade moderna antes mesmo da Semana de Arte Moderna de 22. Nas ruas, diz ele, circulando de mãos em mãos, jamais menos do que 20 jornais diários e um bocado de revistas, algumas das quais pornográficas, ou galantes, como a elas se refere Castro. Segundo o pesquisador, haviam ainda periódicos destinados às colônias, como a portuguesa e alemã, além de publicações produzidas para o meio sindical.
O argumento do jornalista, apesar de soar bairrista, possui um quê de razão, especialmente ao citar que no Rio dos anos 20 flanava pela alma encantadora das ruas João do Rio, tinha Agrippino Grieco que, bem ou mal, era o comediante das suas próprias desgraças, Murilo Mendes declamava que os filósofos de sua terra são polacos vendendo a prestações, Lima Barreto dizia que, numa confeitaria, certa vez, ao amigo Castro, confidenciou as partidas que havia pregado às convicções e às respeitabilidades para poder viver: essa é a premissa da qual parte Ruy Castro, já no primeiro parágrafo da apresentação, mas para aí, por favor.
Parar? Não, Ruy ainda insiste na tese ao dizer que o Rio, cidade que tinha mais de um milhão de habitantes, com prédios moldando a paisagem urbana, bondes andando de um lado para o outro, mulher exibindo saias curtas, carros e gente por todo o lado, não havia – atesta o jornalista – diferenciava-se das províncias do país que não moviam-se pelo ritmo da então capital. E tudo, como num conto de fadas, sob a benção da palavra escrita. “O Rio era a meca, a moenda, o bruaá. A cidade nacional – e internacional”, garganteia o escritor, em “Mesma Época, Mesma Cidade”.
Belo, não? Até é, mas fiquemos aqui, no entanto: por que a cidade pela qual se deve a dívida do rompimento com as formas estéticas caducas, representadas pelo parnasianismo do poeta Olavo Bilac, está situada a quatrocentos e poucos quilômetros da tal metrópole à beira mar, e não nela? O ensaísta Luiz Ruffato, em “Modernismos”, outra obra lançada pela Companhia das Letras em homenagem ao centenário da Semana de Arte Moderna de 22, arrisca uma pista. De acordo com ele, a resposta pode estar na razão pela qual São Paulo, a essa altura com não mais do que 580 mil habitantes, preparava-se para virar o centro comercial e financeiro mais importante do Brasil, ou seja, onde havia dinheiro.
É certo que isso “possibilitava à aristocracia cafeeira patrocinar viagens à Europa a seus filhos e agregados, que lá tomavam consciência da grande revolução de valores — estéticos, políticos, espirituais — que já vinha sendo urdida desde o fim do século 19 e que se aprofundara com a tragédia da Primeira Guerra Mundial — e também pelo fato de ser uma cidade de modesta tradição cultural...” Para contradizer a ideia de Ruy Castro, Ruffato acerta na mosca ao dizer que o Rio, preso ao seu passado de capital da República, não desgrudava-se dos orgulhosos e burocráticos privilégios.
Em Minas Gerais, estado com tradição em produzir novos escritores após a Semana de 22, para citar só Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende, os ecos do modernismo foram ouvidos ainda nos anos 1920, quando Drummond – o primeiro poeta brasileiro do povo, nas palavras do crítico Otto Maria Carpeaux, um dos mais importantes jornalistas a popularizar a pauta do livro na imprensa brasileira – enviou 62 poemas, entre os quais 23 fariam parte de “Os 25 Poemas da Triste Alegria”, mas fica explícito que o poeta dá para trás em relação aos novos rumos.
Nas obras de Bernardo Élis e José Godoy Garcia, pode-se notar influências estéticas encontradas nos escritos de Manuel Bandeira e Mário de Andrade. Élis preserva desfechos trágicos, tingidos de fina ironia, como se vê nas descrições de “Ontem, como Hoje, como Amanhã”, um dos contos mais impactantes do imoral da Academia Brasileira de Letras que, neste DM, na década de 1990, publicou textos inéditos sobre o cotidiano. Também goiano, moderno por excelência, José J. Veiga esquivava-se quando comparado com Gabriel García Márquez e Júlio Cortázar, expoentes da literatura fantástica: “minha literatura é uma literatura realista: nem fantástica, nem mágica.”
“Minha literatura é uma literatura realista: nem fantástica, nem mágica” José J. Veiga, escritor
Com “Os Cavalinhos de Platiplanto”, ele fundiu regionalismo com um realismo que, primo de segundo grau da literatura fantástica, ia além das convenções do gênero. Com as roupas dessa estética, as histórias rejeitavam as técnicas largamente utilizadas e recursos narrativos explorados pela prosa do mistério clássico, ao mesmo tempo em que se desvinculava do boom latino-americano. Contemporâneos de Cortázar e Máquez, o malabarista das palavras botou no centro da trama a alma goiana.
Para fechar, passo a palavra para Antonio Candido, maior estudioso de literatura no Brasil: “Modernismo nos interessava sobretudo como atitude mental, ao contrário de hoje, quando interessa mais como criação de uma linguagem renovadora. Para nós, esta era veículo. Veículo das atitudes de renovação crítica do Brasil; interesse pelos problemas sociais; do desejo de criar uma cultura local com os ingredientes tomados avidamente aos estrangeiros.” É, os ecos do modernismo ainda se fazem presentes.