A importância da Semana de Arte Moderna de 1922 pode ser medida pelos movimentos inspirados nos manifestos e textos ficcionais de seus dois principais artífices: Mário e Oswald de Andrade. Exatamente seis anos após a Semana, em 1928, Mário de Andrade criou um personagem que, de certo modo, resume o estereótipo consagrado do brasileiro: sem caráter, incapaz de se identificar com as causas coletivas e que, por isso, termina a vida sozinho até virar não uma estrela, mas uma constelação. Seu Macunaíma, por outro lado, pode ser entendido de outra forma: seria um índio avesso ao colonizador e resistente ao racionalismo branco. Não era esse também o propósito de Oswald de Andrade ao produzir, no mesmo ano, o Manifesto Antropófago, um manual de devoração da herança cultural estrangeira, concebido como uma resposta do selvagem devorador de caucasianos?
O manifesto oswaldiano foi lido e reinterpretado nos anos seguintes por escritores, artistas visuais, cineastas, músicos e diretores de teatro como uma atualização necessária dos rituais canibais em que se devorava o inimigo para ficar mais forte. Projetos artísticos e literários posteriores ao de Oswald viram nesse ato de deglutição (ou transfiguração) uma fórmula moderna para renovar o panorama conservador da sociedade brasileira. Um deles foi o Tropicalismo, projeto cujo nome foi inspirado numa instalação do artista plástico Hélio Oiticica, exposta na mostra Nova Objetividade Brasileira, de 1967, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
A obra de Oiticica era um labirinto de madeira forrado com areia e pedras, que convidava o espectador a um contato mais íntimo com o Brasil tropical, de plantas exóticas e araras lisérgicas, terminando esse percurso em frente a um aparelho de TV. No mesmo ano, 1967, a antropofagia oswaldiana retoma seu lugar no cenário brasileiro graças ao empenho anterior dos poetas concretos (nos anos 1950) para valorizar o legado modernista. Em maio de 1967, Glauber Rocha lança seu filme mais discutido, Terra em Transe, uma parábola sobre a ditadura brasileira em que, a exemplo de Oswald, o cineasta critica poderosos conservadores e propõe uma revolução no fictício país latino de Eldorado.
As mazelas desse Brasil patriarcal, sugado por agiotas e políticos da pior espécie, foram exploradas pelo próprio Oswald numa peça concebida em 1933, lançada em 1937 (às vésperas do Estado Novo) e montada no histórico ano de 1967 pelo Teatro Oficina sob a direção de José Celso Martinez Corrêa: O Rei da Vela.
Oswald era filho da aristocracia paulistana que faliu em 1929 com o crack da Bolsa de Nova York. Explora na peça um pouco a história desses aristocratas falidos que se uniram a prósperos burgueses para sobreviver, submissos ao capital estrangeiro.
A ressonância do visual tropicalista da peça do Oficina no universo musical brasileiro é evidente, bastando citar as capas dos discos do movimento tropicalista do qual participaram Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Rita Lee e os Mutantes, os poetas Torquato Neto e Capinam, maestros de formação erudita como Júlio Medaglia e Rogério Duprat, além da cantora Gal Costa. A Tropicália, resumida num disco antológico, Panis et Circenses (1968), acentuou os paradoxos da cultura brasileira, ao incorporar todos os estilos, do brega ao rock, e superar as discussões em torno do arcaico e moderno. Tudo era deglutível, principalmente o estrangeiro. O movimento tropicalista foi marcado pela estética da pop art americana e pelo cruzamento híbrido entre a tradição musical brasileira com os grupos de rock de fora.
O Cinema Novo brasileiro foi igualmente uma arma contra todas as dicotomias. Nelson Pereira dos Santos absorveu o cinema experimental europeu, assim como Joaquim Pedro de Andrade, que transpôs Macunaíma para o cinema em 1969, retirando do anti-herói todos os poderes mágicos que tinha no livro. Seu Macunaíma acaba devorado por um Brasil ainda mais selvagem. Mais de uma vez, o diretor contestou que sua obra fosse "tropicalista", mas só a cena da feijoada com carne humana preparada na piscina (do Parque Lage, no Rio), com seu exotismo e cenografia felliniana, basta para justificar a filiação. De qualquer modo, é uma sequência que ilustra, como nenhuma outra imagem, a do banquete canibal do Manifesto Antropófago de 1928. Só a antropofagia nos une, dizia Oswald de Andrade. Deve ser verdade. (Antonio Gonçalves Filho)