Vez ou outra, o Oscar surpreende a comunidade cinéfila com indicações inesperadas, atuações que fogem do protocolo da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas e produções que vão além dos padrões hollywoodianos em matéria estilística. Como ocorre nos grandes filmes sobre arte, cheio de vai e vem sobre a vida, continuidade ou descontinuidade dos relacionamentos, o longa “Drive My Car”, baseado nos contos publicados pelo escritor japonês Haruki Murakami em livro de mesmo nome, gira em torno de um casal na faixa dos quarenta e poucos que vive em Tóquio, capital japonesa.
Até aí, ok: a premissa pode não ter nada demais. Mas é importante compreendermos que o diretor Ryusuke Hamaguchi se mostra há anos uma das vozes mais originais do cinema contemporâneo, com obras aclamadas na Berlinale e Cannes, a exemplo de “Roda do Destino”, filme que criou uma das cenas eróticas mais excitantes da história e nos apresentou a falas sensuais, delicadas e românticas, numa uma energia sexual a partir da qual talvez Tóquio nunca tivesse sido retratada na tela grande.
Na edição deste ano do Oscar, cujos indicados foram anunciados nesta terça-feira, 8, Hamaguchi aparece como favorito em quatro categorias. Seu filme, repleto de ternura e com a assinatura literária de Murakami, um dos principais escritores contemporâneos, concorre aos prêmios de Melhor Roteiro, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Direção, Melhor Filme Internacional e Melhor Filme. A notícia foi informada ao cineasta dois dias depois de ter assumido como jurado na Berlinale, que começa na quinta, 10.
Para nosso azar, “Drive My Car” não tem previsão de estreia no Brasil, porém os romances de Haruki Murakami estão disponíveis nas estantes das principais livrarias de Goiânia. Comece por “Ao Sul da Fronteira, Oeste do Sol”, um fascinante mergulho na fragilidade humana, nas armadilhas da obsessão, na solidão a que somos submetidos por um capitalismo predador e na sensualidade de uma prosa musical, onde a sinfonia das frases encontra o piano do jazzista Duke Ellington: não tem ficar indiferente quando Hajime, o protagonista, se perde na beleza de Shimamoto.
Nascido em 1951, num subúrbio de Tóquio, Hajime está na meia-idade, conquistou o que queria. Os anos pós-guerra lhe trouxeram bom casamento, duas filhas, carreira exemplar, dois clubes de jazz sob sua administração: mais, pra quê? Contudo, ele não consegue esquecer a sensação incômoda de que nada disso lhe traz felicidade, além de ser acompanhado por memórias da infância que envolvem uma garota inteligente e solitária. Shimamoto reaparece numa noite chuvosa, tirando o fôlego dele, ela é linda!
Há certa semelhança entre autor e personagem. Murakami, assim como Hajime, cresceu no subúrbio, num lugar conhecido pelo “barulho de muitas línguas”, para usar uma expressão criada pelo jornalista Sam Anderson em um perfil do romancista publicado em outubro de 2021 no jornal The New York Times, e mergulhou na cultura norte-americana, especialmente o jazz. Cabeludo e barbudo, em vez de arrumar um trabalho numa grande corporação, abriu um clube em que a trilha sonora contemplava artistas como John Coltrane e Miles Davis: varrer, curtir música, preparar drinques.
Por dez anos, essa foi a rotina de Murakami e Hajime. “Para criar alguma coisa, os romancistas ou os músicos têm a necessidade de descer as escadas e encontrar uma passagem que os leve ao segundo subsolo”, disse o romancista, em palestra na Universidade de Kioto. Assim como John Lennon, de quem é fã, o escritor é casado com uma mulher chamada Yoko. “O trabalho de um romancista é sonhar acordado”, afirmou ao El País. De preferência, ouso dizer, escutando Beatles ou Stones.
Entre tanta delicadeza, boa música, paixões arrebatadoras, reflexões sobre a condição humana, chegamos ao ponto nevrálgico da obra cinematográfica de Ryusuke Hamaguchi: um cinema que gosta da palavra, que busca fazer com que atores e atrizes possam interpretar situações comuns ao dia a dia e que passam por afetos. “Gosto da palavra no cinema. Gosto de testar como boas interpretações podem transformam um verbo bem corriqueiro em algo que pode tocar alguém, abrir novos sentidos”, afirmou o diretor durante o Festival de Berlim ao GShow no ano passado, onde foi premiado.
A história de “Drive My Car”, bela e comovente, começa com um casal constituído por uma roteirista de TV, a linda Oto (Reika Kirishima), e seu marido, Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima), ator e diretor teatral. Os dois transam bem, se amam. Num dia qualquer, ela está esperando o companheiro para discutirem o relacionamento deles, porém, de repente, sofre uma hemogarraia cerebral. Restam a ele perguntas sobre seu relacionamento, sobra arrependimento de nunca ter se esforçado para compreender a parceira, sentimentos comuns à literatura de Murakami – como em “Sul da Fronteira, Oeste do Sol”, por exemplo.
Plástico e profundo, o filme já conquistou nada mais nada menos que 60 prêmios, além de a fama de que “Drive My Car” é o filme que se propõe tratar melhor das angústias adultas numa sociedade individualista, conforme foi falado pela imprensa brasileira durante a passagem de Hamaguchi pelo Festival do Rio, no ano passado. Leiam Haruki Murakami, vejam os filmes de Ryusuke Hamaguchi, que está trabalhando numa nova obra, “Our Apprenriceship”. Ainda não sabemos quase nada sobre ela, mas acreditamos que logo menos estará em Cannes.