Meu estilo literário foi moldado pela prosa beat. Lembro-me que a descobri na adolescência por meio de um amigo que tinha toda a bibliografia de Jack Kerouac e Allen Ginsberg na estante de casa. Ali comecei a ter outra consciência socioeconômica. Passei a questionar o status quo e o modelo vigente de sociedade consumista. E ganhei ânimo para tentar escrever como essa turma que foi responsável por mudar a cara da estética literária na segunda metade do século XX.
Movimento cultural ligado à literatura, a Geração Beat surgiu durante a década de 1950. Teve como principais obras On the Road, de Jack Kerouac, Uivo e outros poemas, de Allen Ginsberg, Almoço Nu, de William Burroughs, e Amor nos tempos de fúria, de Lawrence Ferlinghetti. O objetivo dos escritores era ficar cada vez menos presentes no cotidiano imposto pela sociedade capitalista. Propunham viver a vida longe dos arranha-céus, do mercado de trabalho e do progresso tecnológico. Eram vistos como ‘rebeldes sem-causa’ pelos escritores mais conservadores, como Truman Capote.
Aliás, o autor de A Sangue Frio acreditava que os beats produziam subliteratura. Mas Kerouac não estava nem aí para as afirmações do colega de ofício. Fã de Marcel Proust e Loius- Ferdinand Céline, o papa beatnik escrevia em fluxo de consciência tal como o autor de Em busca do tempo perdido, fazendo com que o texto tivesse um quê bagunçado e muitas vezes confuso. Esse estilo também poderia ser notado na poesia de Ginsberg e na prosa de Ferlinghetti, que era proprietário da editora e livraria City Lights Books onde o poema Howl, de Ginsberg, foi lido na íntegra e chocara o público presente.
A escola beatnik, cujo nome foi criado por Kerouac, antecedeu os hippies, na década de 1950. O movimento fez parte da Nova Esquerda, termo que fora alcunhado pelo sociólogo e integrante da Escola de Frankfurt, Herbet Marcuse. Apesar de serem pioneiros, e ainda hoje carregarem o rótulo de não revolucionários por conta da linguagem muitas vezes vista como chula, os beats não se organizavam necessariamente como um grupo ativista.
Em ensaio que compõe a versão em português do manuscrito original de On the road, o ensaísta norte-americano Joshua Kupetz destacou a combinação de elementos poéticos e prosaicos que fortificaram a prosa de Kerouac e tornou possível as transformações mais radicais de sua narrativa. “Essa riqueza de textura, alega Kerouac é necessário se On the road deve ser “um romance poético, ou melhor, um poema narrativo, uma epopeia em mosaico”, discorre.
Estilo
A literatura, em hipótese alguma, pode ficar trancafiada em salas cheias de pó. Como cantou o músico brasileiro Sérgio Sampaio, na década de 1970, em meio aos chumbos dos militares, a poesia não deve ser destinada somente a uma elite que usa a mesóclise nos jantares entediantes com tios, pais, mães, irmãs e primas. Ou que vive o discreto charme da burguesia, ao melhor estilo Luis Buñuel. A linguagem, matéria-prima dessa arte, está em constante transformação, bem como a sociedade.
No caso dos beats, o ritmo do texto se dava por meio do uso de benzedrina, droga estimulante. Para se ter uma ideia, Kerouac bateu em sua máquina de escrever On the Road, um romance de 700 páginas, em quinze dias. O autor chegou a colar as laudas com fita adesiva para não precisar levantar da cadeira enquanto estivesse datilografando suas aventuras vividas ao lado de Neal Cassady e Allen Ginsberg.
A vida dos beats pode ser sentida logo nas primeiras páginas do romance de Kerouac. “Para mim, pessoas mesmo são os loucos, os que estão loucos para viver, loucos para falar, loucos para serem salvos, que querem tudo ao mesmo tempo, aqueles que nunca bocejam e jamais dizem coisas comuns”, escreveu o romancista, que foi autor também da novela Tristessa, de 1960 e Vagabundos Iluminados, publicado em 1958, duas de seus principais trabalhos.
Especialista em literatura beat, o poeta e crítico literário Claudio Willer explicou que a literatura teve outros autores marginais no século XIX. “Eles influenciaram tudo, a beat e o restante. É forte a influência de românticos — Gregory Corso idolatrava Shelley, fez que o enterrassem em Roma ao lado do túmulo do poeta inglês”, escreveu o estudioso em Os Rebeldes, lançado em 2014, livro que detalha quais eram as principais características e influências do movimento.
Willer reforçou ainda que os formalistas estadunidenses também podem ser considerados precursores do movimento beatnik. “Ezra Pound e dois de seus seguidores, William Carlos Williams, mentor de Ginsberg, e Charles Olson, cultuado por Michael McClure (expoente da poesia beatnik). E muito mais. Kerouac e amigos faziam leituras em voz alta de Ulisses e Finnegan’s Wake, de James Joyce, para captar a prosódia. Viajavam com um volume de Proust, como foi mostrado no filme de Walter Salles, Na estrada”, discorreu.
Paz
Na década de 1960, quando a opinião pública começou o fluxo de consciência da Geração Beat, Ginsberg se entusiasmou com a bandeira pacifista e contrária à Guerra do Vietnã. Foi nesta época que Keroauc acabou se distanciando do colega. Morto em 1969, em decorrência de cirrose hepática, o romancista se tornou reacionário no final de sua vida e passou a defender o conflito asiático. Para ele, os hippies, que o reverenciavam, não passavam de meros bobões em seus protestos que pregavam a paz.
Ainda que episódios difíceis de compreender como esse tenham acontecido, e aconteceram ao longo da história da literatura, vide o adepto do nazismo Loius Ferndinand Céline, Jack Kerouac tinha no início a pretensão de fazer uma espécie de contraponto ao estilo de vida estadunidense. Para isso, incentivou o uso de drogas, sexo livre e utopias anarquistas. Inclusive, ao contrário do que é dito, ele foi o primeiro a fazer uma ligação direta entre a arte e a vida no mundo moderno.
Assim, é imprescindível saber que não faço neste livro nada que se aproxime do que os beats outrora fizeram. Não. Minha intenção é produzir uma obra original o bastante para servir como documento histórico à posterioridade sobre um período que se convencionou chamar de Primavera Estudantil. A única coisa que me une aos beatniks é o ódio em relação aos desmandos promovidos pelos donos do poder, o que é refletido na escrita exagerada em alguns aspectos e intensa em outros.
Bem, se a sinfonia de Keroauc e companhia era o jazz, a minha durante essas linhas que você teve a paciência de ler era o som de Victor Jara, cantor chileno morto pela polícia política do ditador sanguinário Augusto Pinochet, e a argentina Mercedes Sosa, rainha das canções de protesto em espanhol e contemporânea do general Jorge Videla.
Eis a deixa: “Sólo le pido a Dios/ Que la guerra no me sea indiferente/ Es un monstruo grande y pisa fuerte/ Toda la pobre inocencia de la gente/ Es un monstruo grande y pisa fuerte/ Toda la pobre inocencia de la gente”.
Espero que tenha gostado de toda essa loucura relatada até aqui.