Com uma meia arrastão e um body, Anitta deposita as mãos no chão, levanta o tronco e, ao distribuir o peso de seu corpo entre os braços, mexe o quadril. Em espanhol, a cantora diz que, em meio à sexo e álcool, independente do que acontecer, sabe que o pretendente não vai lhe esquecer. Dirigida pela carioca de 28 anos, a cena do clipe “Envolver”, numa alta temperatura erótica e sensual, representa o passo mais ousado dado pela brasileira lá fora: pelos quatro continentes, seja no Instagram ou no Tik Tok, a coreografia bomba entre pessoas de todas as idades.
Tamanho sucesso levou “Envolver” em direção ao topo do ranking das músicas mais ouvidas no Spotify mundo afora. Na tarde desta terça, 22, o single, que antecede “Gril From Rio”, disco que deve sair no mês que vem, chegou à quinta posição, antes de estacionar na sétima. Mas o hit, febre do momento e um dos favoritos do público, está longe de ser novidade e obteve destaque em novembro do ano passado, quando chegou à décima oitava colocação dos mais procurados.
Com uma coreografia que não reserva nada para a imaginação, Anitta dá um passo ousado na carreira. E não deixa de ser, guardadas as proporções, um símbolo daquela mulher brasileira personificada por Vinícius de Moraes e Tom Jobim em “Garota de Ipanema”, música brasileira que ganhou mais releituras na história, desde as tradicionais de Frank Sinatra e Stan Getz até a versão funkeada - ao melhor estilo Dusty Springfield e Al Green - de Amy Winehouse. Bem ou mal, a carioca é a nossa maior estrela na música pelo mundo e também quem é capaz de melhor exportá-la.
Aos 28, prestes a completar 29, pois Anitta nasceu em 30 de março de 1993, compreende a força que sua imagem tem diante dos fãs. Empoderada e em sintonia com as pautas a respeito do direito das mulheres, a carioca coleciona treta pelo twitter com o secretário especial da cultura, Mário Frias, direciona críticas espinhosas ao governo de Jair Bolsonaro sempre que requisitada e atira farpas à macharada. Desconfia-se que o sucesso feito por ela esbarra num complexo difícil de lidar: o de homens que não toleram, não suportam e também não querem ver mulheres brilhando.
Até já tentaram desmerecer sua música, definindo-a como de segunda e de terceira categoria, como se isso, em si, fosse um problema. Pode ser, sobretudo aos críticos, porém jamais deve servir como pretexto para se partir às ofensas que revelam um sexismo que nem é tão mascarado assim. Em matéria de originalidade harmônica, a música de Anitta está longe de ser o bicho da goiaba e um gringo desavisado pode achar que o pastiche enlatado cantado por ela é exemplo do nosso cancioneiro, e não é.
Entende-se sua vontade de levar o funk carioca para o mundo. Aliás, trata-se de uma iniciativa louvável, podendo ser comparada à ida de Pixinguinha a França, em 1922. Lá, assim como de certo modo acontece hoje com Anitta, a música encantou. Décadas depois, com “Getz/ Gilberto”, a canção brasileira foi apresentada aos quatro cantos do globo, e dos ouvidos estrangeiros nunca mais saiu, tornando-se sucesso radiofônico e fonográfico em países como Japão. Mas um ignorante em relação à música brasileira, ao ouvir “Girl From Rio”, pode sair por aí crente que a brasilidade resume-se aos corpos com marquinhas de biquíni no Rio.
Em suas declarações, Anitta afirma que “Girl From Rio” é o inverso disso. “É um álbum que traz toda a essência do Brasil nos ritmos, nos visuais, na essência. Nele tem funk, forró, pagodão baiano, ritmos brasileiros. Um projeto feito por uma mulher brasileira para o mundo”, disse a cantora, cujas letras do disco são todas em espanhol e inglês. Além da faixa que traz um sample do clássico “Garota de Ipanema”, o outro hit, “Boys Don´t Cry”, nem esconde que é um pop fabricado para infestar as rádios dos EUA com um som dançante, alto-astral. A assinatura? Do produtor Max Martin.
E quem é ele? Entre os artistas com os quais já trabalhou, destaca-se – só para citar dois deles – a diva do pop, Lady Gaga, cujo disco “Chromatica” contou com um forró cantado por Gaga e pela brasileira Pablo Vittar, e Adele, que em “30”, seu último álbum, emocionou os fãs ao lançar um trabalho carregado de reflexões sobre seus relacionamentos, com o ex-marido e com o filho, e a partir daí também demonstrar uma sonoridade da melhor qualidade, cheia de jazz e muito sentimento canalizado.
Anitta, como se sabe, não quer comover ninguém. A julgar por “Envolver”, cujo clipe se tornou uma febre mundial, a cantora está mais preocupada em transmitir sensualidade, como transparece o eu-lírico da música escrita pela carioca em parceria com os hispano-americanos Julio M. Gonzales, Tavarez Freddy Montalvo e José Carlos Cruz. Num Brasil obscuro e conservador, a cantora não tem culpa em seguir cometendo a heresia, meu Deus do céu!, que choca a caretice pelo pecado em aparecer com a bunda empinada, dançando com um bonitão sarado que lhe agarra por trás.
O melhor, ou o pior, dependendo do ponto de vista, é que isso virou febre. Se Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Jobim, João Gilberto, Baden Powell, Mutantes, Jorge Ben Jor e Michael Teló arrebataram multidões em seus shows internacionais, é Anitta que, agora, leva nossa música ao mundo. E não há problema nenhum em dispensar as roupagens tradicionais da MPB para vestir uma roupa musical, digamos, mais palatável, num pop certeiro e em cuja companhia será difícil ela passar despercebida.
Neste século 21, o funk define nossa música lá fora e somos a sociedade que mais escutamos nossos ritmos. Foi assim com o chorinho, samba-canção, bossa-nova, tropicália, e assim está sendo com o estilo popularizado por Anitta. É bem provável que daqui dois ou três anos nem lembremos do reaggaton “Envolver”, mas por ora tem um público que se apaixonou pelas batidas vibrantes e animadas, sem as vozes consagradas de “Me Gusta” (Cardi B e Mike Towers) e “Sim ou Não” (Maluma), mas com uma modéstia que talvez, para os fãs, seja um charme que merece atenção. Aguardemos as cenas dos próximos capítulos da internacionalização de Anitta.
Confira o clipe "Envolver":