À luz da pós-verdade, a filósofa Hannah Arendt precisa ser lida, debatida e compreendida. Como se seus textos fossem uma lupa em que explica as origens do autoritarismo, Arendt se tornou imprescindível para a história do mundo ocidental, com uma obra mais atual do que nunca e por meio da qual a pensadora conseguiu demonstrar como os regimes totalitários estabeleceram um novo tipo de sistema político, desconhecido na história, que não era apenas uma ditadura ou autocracia.
Segundo a jornalista e filósofa Rosângela Chaves, que lança nesta terça, 22, na Livraria Leitura do Goiânia Shopping a obra “O Dia de Glória: Revolução, Opinião e Liberdade em Tocqueville e Arendt”, a autora se espantou ao ver em Eichmann não um monstro, porém um sujeito cretino, que orgulhava-se de ser um funcionário exemplar, ainda que sua função fosse levar à morte milhões de pessoas. “Ele se dizia um cidadão do bem e respeitador das leis, no caso, as leis do regime de Hitler”, diz Rosângela, cuja obra é fruto da tese de doutorado que defendeu na Faculdade de Filosofia da UFG em 2018.
Sob orientação da professora Helena Esser dos Reis, Rosângela traça um estudo comparativo entre as obras de Alexis de Tocqueville (1805-1859) e Hannah Arendt (1906-1975), em que demonstra as estreitas confluências entre ambos e os aproxima de uma tradição republicano-democrática de defesa da ação política e a da emancipação popular na vida pública. Autor de “A Democracia na América”, Tocqueville foi percursor na análise da democracia representativa. Já Hannah Arendt, como se sabe, deixou as brilhantes obras “Origens do Totalitarismo” e “Sobre Revolução”.
Desde o mestrado, entre 2005 e 2006, Rosângela se debruça sobre a obra de Arendt. Sua dissertação foi transformada em livro no ano de 2009, com o nome de “A Capacidade de Julgar”, lançada pela Cânone Editorial. Aos poucos, começou a estudar o tema da opinião e da opinião pública na obra da filósofa, sobretudo as críticas que ela faz à opinião pública, rebaixada ao pensamento uniforme das massas em livros, como é possível observar em “Sobre a Revolução” e “A Condição Humana”. “Já pensando em um projeto de doutorado”, conta. No entanto, engrenou na leitura de Tocqueville.
Entre os dois, notou uma grande confluência, tanto a respeito da opinião pública, a partir do tema “tirania da maioria”, como também por meio da homogeneização do pensamento nas sociedades democráticas de massa, a exemplo do que escreve Tocqueville em “A Democracia na América”. Mas Rosângela Chaves diz que que, à medida que suas pesquisas foram avançando, constatou confluências dos dois em outros temas: a forma como interpretam as Revoluções Americana e Francesa, além de como percebiam a liberdade e a aproximação deles com a tradição republicana.
Para dar envergadura à obra, além de dividir-se entre a rotina cansativa na redação de O Popular (veículo do qual era editora no começo do doutorado) e a jornada de estudos, a filósofa e jornalista realizou parte de suas investigações na Universidade de Coimbra, em Portugal, sob a co-orientação do professor Alexandre Franco de Sáe e também passou um tempo no Centre d´Études Politiques et Sociologiques Raymond Aron (Cespra) e na Bibliothèque Nacional de France, em Paris. “Isso me facilitou sobretudo para pesquisar textos de Tocqueville (ensaios, artigos, cartas)”, conta.
Com três décadas de carreira na imprensa, Rosângela Chaves edita e escreve em Ermira Cultura, onde pratica um jornalismo com verve ensaística. Também é professora do curso de Direito da Faculdade Católica de Anápolis e faz parte da equipe de docentes da Escola Superior de Advocacia da OAB-GO. “Só tenho a agradecer essa oportunidade oferecida por uma universidade pública brasileira, infelizmente tão atacada hoje, mas que é fundamental para o desenvolvimento do país”, afirma.
“O Dia de Glória” foi selecionado num edital nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof), em parceria com as Edições 70/Editora Almedina, que é de portuguesa, tem grande prestígio e atua no Brasil. “Concorreram trabalhos de todo o país e o meu foi um dos três escolhidos (os outros foram uma dissertação de mestrado e um trabalho de um professor de pós-graduação de uma universidade de São Paulo), que vão integrar a Coleção Anpof, das Edições 70”, relata.
Seu livro? Inaugura a coleção. Sim, as ideias podem ser revolucionárias. A seguir, confira a íntegra da entrevista que a filósofa e jornalista Rosângela Chaves concedeu ao Diário da Manhã, em que ela fala – entre outras coisas – sobre como Arendt nos ajuda a pensar jornalismo e autoritarismo:
Diário da Manhã - Hannah Arendt chegou a colaborar com a imprensa e na revista The New Yorker, uma das mais prestigiadas do mundo. Como ela pode nos ajudar a compreender o jornalismo neste século 21?
Rosângela Chaves - Arendt foi uma assídua colaboradora de revistas e jornais ao longo de sua trajetória, escrevendo ensaios, artigos, resenhas, cartas. Dois ensaios que Arendt escreveu, em particular, são muito elucidativos para pensarmos o papel do jornalismo hoje. Em “Verdade e política”, do livro “Entre o passado e o futuro”, ela discute a questão da verdade factual, que é a matéria-prima do jornalismo, e mostra como ela é frágil, porque depende de testemunhas, de comprovação, e muitas vezes parece ser contraditória, obscura, incoerente – uma vez que a própria realidade é assim.
"Arendt foi uma assídua colaboradora de revistas e jornais ao longo de sua trajetória, escrevendo ensaios, artigos, resenhas, cartas"
Diante do uso em larga escala do que ela chama de “mentira organizada”, ou seja, a mentira como instrumento para governar as massas, o que se tornou rotina nos governos totalitários do século 20, a verdade factual se torna muito frágil. Outro perigo que ela aponta no texto é que se tornou algo corriqueiro hoje é confundir verdade factual com opinião, ou seja, a verdade histórica, factual, torna-se um mero ponto de vista, um “acho que...”, como se eu pudesse dizer que “eu acho que” ou “eu não acho que” houve uma ditadura militar implementada no Brasil com o golpe de 1964.
Ou seja, é como se as pessoas pudessem escolher seus próprios fatos, assim como emitem suas opiniões. Outro texto importante é “A mentira na política – considerações sobre os Documentos do Pentágono”, de “Crises na república”, em que ela retoma a questão do uso político da mentira, no caso pelo governo norte-americano durante a Guerra do Vietnã, e reforça a importância do jornalismo independente para o estabelecimento da verdade factual. Mas veja só, para assumir esse papel, o jornalismo deve estar livre de pressões políticas e econômicas e este é o nosso desafio.
DM - Nos textos publicados na prestigiada revista norte-americana, Arendt relata o julgamento de Adolf Eichmann e disserta a respeito do que ela chamou de "Banalidade do Mal". É possível se utilizar dessa teoria para analisar governos com viés autoritário?
Rosângela - O termo “banalidade do mal” foi usado por Arendt para se referir a Eichmann, um oficial nazista que foi capturado por agentes secretos de Israel no início da década de 1960 na Argentina, onde ele estava escondido desde o final da Segunda Guerra, para ser levado a julgamento em Israel por seus crimes contra o povo judeu. Eichmann era o responsável por toda a logística do transporte ferroviário que levava os prisioneiros para o campo de concentração. Durante o julgamento, Arendt se espantou como Eichmann não era um monstro, mas um sujeito ordinário, que se orgulhava de ser um funcionário exemplar, embora a eficiência dele no trabalho fosse providenciar a morte de milhões de pessoas.
Ele se dizia um cidadão do bem e respeitador das leis, no caso, as leis do regime de Hitler. Quando ela fala em banalidade, isso não diz respeito ao mal praticado por Eichmann, que era imenso e aterrador, mas à sua personalidade, porque ele era incapaz de profundidade, de refletir (no sentido de se colocar no lugar do outro) sobre o que estava fazendo. Esse sujeito banal, supérfluo, no entanto, foi capaz de praticar crimes contra a humanidade. Talvez nesse sentido esse conceito possa nos ajudar a pensar o momento em que vivemos, como pessoas que se dizem cidadãs do “bem”, respeitadoras da lei, podem se tornar agentes de forças políticas profundamente destruidoras.
DM - Arendt também escreveu uma obra seminal para o entendimento do antissemismo e do autoritarismo, "Origens do Totalitarismo". Qual a importância de lermos e estudarmos a filósofa numa época em que as democracias liberais estão se esfacelando?
Rosângela - Essa obra é mais atual do que nunca. Arendt foi pioneira ao demostrar que os regimes totalitários constituíam um novo tipo de regime político, desconhecido na história, que não poderiam ser confudidos com meras ditaduras ou autocracias. O que os governos totalitários almejam, como o nome já indica, é o controle total dos indivíduos, tanto na sua vida pública quanto na sua vida privada.
O fascismo tem como objetivo controlar não só os corpos, mas também as mentes, daí a importância da ideologia. Em épocas como a nossa, de profunda crise política e econômica, as ideologias totalitárias – com o seu poder de construir uma realidade paralela, dotada de uma lógica interna, que pode aparecer absurda para quem olha de fora, mas é incrivelmente sedutora para as pessoas que se deixam aprisionar por ela – podem exercer um perigoso apelo para as massas de indivíduos que se sentem supérfluos, em um mundo que para eles deixou de fazer sentido.
DM - Sua obra mostra um inédito estudo comparativo entre Hannah Arendt e Alexis de Tocqueville. Mesmo vivendo em épocas diferentes, os dois possuem bastantes semelhanças. Qual é o principal legado deles para a nossa compreensão da democracia?
Rosângela - Arendt e Tocqueville viveram em momentos também de profunda crise política, social, econômica. Tocqueville teve parte de sua família devastada durante o Terror na Revolução Francesa e, no seu tempo de vida, na primeira metade do século XIX, a França, sua terra natal, foi palco de várias revoluções. Arendt viveu as duas guerras mundiais. Para procurar entender a sua época, eles não procuraram modelos ou categorias já estabelecidos, mas tentaram refletir a partir do próprio acontecimento.
"Isso é fundamental porque, para eles, não cabe ao filósofo (e nenhum deles se via como tal) ditar regras para a política, mas tentar compreender a política a partir da experiência concreta"
Isso é fundamental porque, para eles, não cabe ao filósofo (e nenhum deles se via como tal) ditar regras para a política, mas tentar compreender a política a partir da experiência concreta. Dito isso, em resumo, destaco que o que aproxima esses dois autores é a valorização da vida pública, do espírito público, da participação popular, de uma compreensão da liberdade não como liberdade individual, de fazer o que quero, mas como sinônimo da participação na vida pública, de atuar em conjunto com os outros no espaço da política. Essa valorização do coletivo, do espírito público, da efetiva participação popular na vida pública, das virtudes cívicas, ou seja, das virtudes do cidadão, os aproxima – e este é o ponto central da minha pesquisa – de um tradição republicana de pensar a política.
DM - Sua trajetória acadêmica está ligada às universidades públicas. Como foi a processo de publicação do livro?
Rosângela - Minha graduação em Jornalismo e meu mestrado e doutorado foram realizados em uma universidade pública, na Universidade Federal de Goiás, embora eu tenha cursado Direito da PUC-GO (na minha época, era Universidade Católica de Goiás) e mais recentemente me formei em Filosofia – Licenciatura, por uma instituição privada, o Centro Universitário Claretiano, de São Paulo.
"Todo um conjunto de temas que ampliaram muito a minha ideia inicial e que terminaram por abarcar conceitos tratados por ambos os autores ao longo da obra de cada um"
Meu livro foi selecionado em um edital nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof), em parceria com as Edições 70/Editora Almedina, que é uma editora portuguesa de enorme prestígio e que agora está atuando também no Brasil. Concorreram trabalhos de todo o país e o meu foi um dos três escolhidos (os outros foram uma dissertação de mestrado e um trabalho de um professor de pós-graduação de uma universidade de São Paulo), que vão integrar a Coleção Anpof, das Edições 70. O meu livro inaugura a coleção.
DM - Como nasceu a ideia de estudar Arendt e Tocqueville?
Rosângela - Eu já tinha trabalhado com Arendt no meu mestrado, em 2005/2006, cuja dissertação foi transformada em livro e publicada em 2009 (A capacidade de julgar/Cânone Editorial ; Editora da UCG). Comecei a estudar o tema da opinião e da opinião pública em Arendt, particularmente as críticas que ela faz a opinião pública, reduzida ao pensamento uniforme da massa em livros como "Sobre a revolução" e "A condição humana", já pensando em um projeto de doutorado. Mas aí comecei a ler Tocqueville e vi uma enorme confluência de Arendt, na questão da opinião pública, com o tema da “tirania da maioria” e também da homogeneização do pensamento nas sociedades democráticas de massa, como ele aborda em "A democracia na América".
À medida que minhas pesquisas foram avançando, constatei muitas confluências dos dois em outros temas, por exemplo, a forma como interpretam as Revoluções Americana e Francesa, como eles concebem a liberdade, a aproximação deles com a tradição republicana, como disse acima. Enfim, todo um conjunto de temas que ampliaram muito a minha ideia inicial e que termirnaram por abarcar vários conceitos tratados por ambos os autores ao longo da obra de cada um.
DM - Quais foram os desafios durante os anos de pesquisa?
Rosângela - Quando comecei o doutorado, eu era editora de Cultura do jornal O Popular e realmente estava muito difícil conciliar os estudos e o trabalho. Em 2015, eu saí do jornal e consegui uma bolsa da Capes, assim pude me dedicar inteiramente à pesquisa. Também foi muito importante o período que eu fiquei em Portugal, no estágio de doutorado sanduíche, na Universidade de Coimbra e também na Universidade de Lisboa. Também passei uma temporada valiosa em Paris, onde pude pesquisar na Biblioteca Nacional da França e no Centro de Estudos Sociológios Raymond Aron. Isso me facilitou sobretudo para pesquisar textos de Tocqueville, como ensaios, artigos, cartas.
Foi um ótimo período esse da pesquisa – muito trabalho, é claro – mas sempre tive muito apoio da UFG, da minha orientadora Helena Esser dos Reis, e dos demais professores. Só tenho a agradecer essa oportunidade oferecida por uma universidade pública brasileira, infelizmente tão atacada hoje, mas que é fundamental para o desenvolvimento do país.
O dia de glória chegou: revolução, opinião e liberdade em Tocqueville e Arendt
Data: terça, 22
Horário: das 19 às 22h
Local: Livraria Leitura, Goiânia Shopping
Páginas: 547
Editora: Edições 70/ Almedina
Preço: R$ 179,00