O som do trompete soprado por Miles Davis sai cristalino. Solitário e inventivo, o instrumentista explora melodias até então novas, num ritmo delicado marcado por baquetas tocadas suavemente na bateria, como se fossem dois amantes curtindo a sinfonia do prazer no auge do desejo. Aos quatro minutos, a faixa “So What” tem uma deliciosa reviravolta: o saxofonista John Coltrane sensualiza com um ritmo calmo. Assim Davis abre o LP “Kind Of Blue” (1959), um dos clássicos do jazz moderno.
Davis oferece prazer, emoção, surpresa e, além de tudo, despeja doses de energia suficientes para que não mais desgarremos da beleza musical. Ele é, sem dúvida, o responsável por revolucionar a linguagem jazzística em “Bags´Groove” (1954), um improviso que dura mais de 11 minutos, porém em “Kind Of Blue” transporta o ouvinte para uma realidade na qual o tempo está congelado no ponteiro do relógio, apenas acompanhado do sopro que entra nos tímpanos e alimenta a nossa alma.
Para essa façanha, que fez a cabeça de meio mundo de 1959 pra cá, Davis estava acompanhado de dois músicos do primeiro time do jazz norte-americano: Milt Jackson, no vibrafone, e Thelonious Monk, ao piano. Monk, inclusive, assina um disco indispensável aos amantes do estilo: “Monk´s Dream” (1963) sintetiza o estilo revolucionário do pianista. O curioso é que a gravadora Columbia Records resolveu chamar os instrumentistas sem o consentimento de Davis. “Só toca acordes errados”, dizia o trompetista, a respeito do pianista que virou a música clássica de ponta cabeça.
Em “A Autobiografia”, conversa franca com o leitor em que Davis abre o jogo sobre música, racismo, drogas e mulheres, o músico diz que melhor sensação que teve na vida foi quando ouviu Dizzy Gillespie, Charlie Parker, Buddy Anderson, Gene Ammons, Lucy Thompson e Art Blakey juntos na mesma banda num show em St. Louis, Missouri, em 1944. “Era do caralho. Cara, aquela porra subiu pelo meu corpo todo. Música pelo meu corpo todo, e era o que eu queria ouvir”, diz o músico, na obra recém saída do forno pela editora Belas-Letras – especializada em títulos sobre música.
Aos 18, já formado na Lincoln High School, Davis só tinha uma ideia na cabeça: tocar. Apaixonado pela velha guarda do jazz, o músico ouvia à exaustão “Wood ´n´ Tou”, de Dizzy, além de Coleman Hawkins, Lester Young e Duke Elligton com Kimmy Blanton no baixo, “que era fodido também”. “Na época, Dizzy era meu ídolo. Eu tentava tocar os solos de Diz daquele último álbum dele que eu tinha.” Tempos depois, em meados dos anos 40, finalmente o conheceu: “ainda me lembro de quando era apenas um garoto, com muito chão pela frente, e convivia com todos aqueles músicos incríveis, meus ídolos até hoje. Cara, era uma coisa de outro mundo.”
Em 1947, Parker organizou seu quinteto, onde Davis tocava, e ali nascia um dos grupos mais importantes do bebop. No ano seguinte, figura central era no movimento responsável por transformar o jazz após a Segunda Guerra, assinou contrato com a Capitol para gravar um noneto, no qual nomes seminais do movimento também se apresentavam. Foram três sessões, realizadas entre 21 de janeiro e 22 de abril de 49, e março de 50. Com doze temas, o long-play recebeu o batismo de “The Birth Of The Cool”, deixando uma marca indefectível e abrindo estradas que levaram a novos rumos na segunda metade do século 20, com Miles Davis como protagonista.
Mesmo mudando tudo com “Kind Of Blue” (1959), “Miles In The Sky” (1968), “Files de Kilimanjaro” (1968) e “Bitches Brew” (1969), discos centrais para a música contemporânea, Davis viveu o racismo. Em sua autobiografia, o músico conta que Cicely Tyson, uma das muitas mulheres que fizeram parte de sua vida, convidou-lhe para ir à Casa Branca sob o governo de Ronald Reagan numa homenagem a Ray Charles. Sentado à mesa, uma “esposa de político”, como o trompetista define a interlocutora, pergunta-lhe os motivos que levaram o jazz a ser rejeitado nos EUA.
Davis resume-se a dizer apenas que o “jazz é ignorado aqui porque o homem branco gosta de vencer em tudo”. Inconformada com tamanha firmeza na resposta do músico, a mulher continua: “O que você fez de muito importante na vida?” Mais uma vez, com uma rapidez no raciocínio, emenda: “Mudei a música cinco ou seis vezes.” Além da revolução de “Kind Of Blue”, “Miles In The Sky”, “Files de Kilimanjaro” e “Bitches Brew”, o instrumentista criou ainda “Pangaea” (1975) e “Tutu” (1986), lançado seis anos antes de morrer vitimado por complicações de um AVC.
Outro episódio também lhe acossou. “Eu fiquei parado na frente do Birdland, ensopado de suor porque era uma noite quente, mormacenta e abafada de agosto. Um policial branco me abordou, dizendo pra eu sair andando. Falei: ‘sair andando por quê? Estou trabalhando aqui. É o meu nome ali em cima, Miles Davis, e apontei para a marquise iluminada”, recorda-se, em “Autobiografia”, publicada pela Belas-Letras. Nessa noite, sua cabeça sangrou e teve uma acusação de resistência à prisão.
Para Miles Davis, músico antenado às novidades musicais de seu tempo, tanto João Gilberto quanto Tom Jobim (criadores da bossa nova) eram negros. Foi num bate-papo com o cineasta Glauber Rocha, em Nova Iorque, que o instrumentista chegou a essa conclusão. Não se referia a tonalidade da pele, e sim à junção entre jazz e samba que os brasileiros espalharam pelo mundo. No Brasil, apresentou-se no Canecão, casa de espetáculos do Rio de Janeiro, em 1986. Davis morreu em 28 de setembro de 1991.
Miles Davis: A Autobiografia
Autor: Miles Davis
Gênero: Memórias
Editora: Belas-Letras
Preço: R$ 89,10