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Há 100 anos, nascia Jack Kerouac, escritor influenciado pelo jazz que inspirou gerações

Claudio Willer

Especial para a Agência Estado

Terá sido “On the Road” (aqui publicado pela L&PM, assim como todas as demais edições brasileiras em que a editora não estiver indicada) a narrativa mais influente da segunda metade do século 20? Outras grandes obras não ultrapassaram o sistema literário; inspiraram literatura, mas não comportamento. Não tiveram a dimensão épica da convocação de Jack Kerouac (1922-1969) ao anunciar a geração beat - termo criado em 1948 durante uma conversa com John Clellon Holmes, autor de “Go” - e apresentar-se como porta-voz em “On the Road”: conforme seus diários, Kerouac, cujo nascimento completa 100 anos, pretendia intitular essa narrativa de Beat Generation.

A crônica das suas consequências inclui a história do rapaz que saiu de casa com sua guitarra, deixou de se chamar Robert Zimmerman e adotou o nome de Bob Dylan. Algo semelhante ocorreu com o cineasta Francis Ford Coppola, o narrador Ken Kesey, o músico Lou Reed. O impacto foi favorecido por aquele, precedente, de “Howl” escrito por Allen Ginsberg (em “Uivo e Outros Poemas”). Foram obras que, além de estimularem rupturas, transmitiram um sentido de identidade para pessoas à margem, como registrado pela poeta Diane di Prima no capítulo final de “Memórias de uma Beatnik” (Veneta).

Eles promoveram - com William Burroughs, mentor do grupo, Gregory Corso, Michael McClure, Gary Snyder, Lawrence Ferlinghetti e outros - o aparecimento dos beatniks e hippies. Kerouac os anunciou em “Os Vagabundos Iluminados”: “Pense nos milhões de sujeitos espalhados pelo mundo com mochilas nas costas, percorrendo o interior e pedindo carona e mostrando o mundo como ele é de verdade”.

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Para Willer, Kerouac fazia uma interpretação pessoal do historiador Oswald Spengler - Foto: Wilbur T. Pippin/ Facebook

Mais tarde, criticaria os manifestantes da década de 1960, enxergando neles a massificação que execrava; e, reacionário convicto, uma ameaça comunista. Seu conservadorismo, uma herança familiar: o pai e a mãe, caipiras franco-canadenses da região do Percé, eram, inclusive, antissemitas. Isso contrasta com a influência de outro escritor-aventureiro, Jack London, marxista; e com sua identificação a indígenas, negros, vagabundos, párias, com declarações como esta, em “On the Road”: “Num entardecer lilás, caminhei com todos os músculos doloridos entre as luzes da 27 com a Welton no bairro negro de Denver, desejando ser um negro. Desejava ser um mexicano de Denver, ou mesmo um pobre japonês sobrecarregado de trabalho, qualquer coisa, menos aquilo que eu tão aterradoramente era, um ‘branco desiludido’”.

Kerouac fazia uma interpretação pessoal, platônica, do historiador Oswald Spengler, autor de “A Decadência do Ocidente”, valorizando os felás ou fellaheen, o estrato mais arcaico das sociedades.

Recebido com uma resenha no New York Times que impulsionou suas vendas, isso não impediu que “On the Road” fosse e ainda seja atacado pelo culto à espontaneidade, desordem formal, apologia da libertinagem, uso exagerado de categorias religiosas. Os beats chegaram a ser acusados de iletrados, obliterando suas constantes referências a leituras.

Kerouac não foi apenas um narrador de viagens. Seu período de produção mais intensa e vida mais frenética, entre o início das viagens relatadas em “On the Road” em 1947 e seu lançamento, resultou em obras memorialísticas, no originalíssimo “Doctor Sax”, uma narrativa mítica, e nos poemas de “Mexico City Blues”, “San Francisco Blues” e “Scattered Poems”, além do “Livro de Haicais”, organizado por Regina Weinreich; e três obras sobre budismo; as anotações de sonhos e uma narrativa exibindo a "prosódia bop", Os Subterrâneos.

Retornaria à memorialística em 1967, em seu canto de cisne, “Vanity of Duluoz” - obra das melhores (opinião partilhada pelo biógrafo Gerard Nicosia e por Ginsberg): em longos períodos, harmonizou a fala das ruas e a prosódia shakespeariana. Resultado de leituras em voz alta de Shakespeare e Joyce com seu colega Steve Sampas, para se familiarizar com o inglês, pois até os 5 anos falava kanuck, dialeto ágrafo de franco-canadenses. Sua aguda sensibilidade musical - além de descobrir o “bop” nos lugares onde foi criado, o Minton’s e Apollo no Harlem, e de entrar nas filas para ouvir Frank Sinatra, largou a universidade ao som de Wagner e saiu de casa ao som da Sétima Sinfonia de Shostakovich - pode ter relação com esse treino da sensibilidade para o mundo sonoro.

Mitômano

Kerouac foi um personagem de si mesmo. Biografias preenchem uma extensa prateleira de estante, desde o trabalho pioneiro de Ann Charters. “Mitógrafo”, denominou-o Snyder em “O Livro de Jack”, coletânea de entrevistas por Gifford e Lee (Globo). Mitômano, mentiroso de marca maior, também seriam termos apropriados. Um exemplo, a lenda que criou sobre a publicação tardia de “On the Road”. Imputou o atraso ao crítico Malcolm Cowley, estudioso da Lost Generation.

Na verdade, foi do próprio Jack a iniciativa de recolher o calhamaço de folhas de telex coladas. Preparou quatro versões até chegar à forma impressa - conforme o bom apoio crítico nos prefácios de “O Manuscrito Original” - além das precedentes anotações no diário, durante as viagens. A versão final teve adição de prosa poética e retirada de irrelevâncias, como a tentativa de reatar com a primeira esposa, Edie Parker (em cujo apartamento se reuniram os formuladores da “nova consciência”, mais tarde a beat).

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Período de escrita frenética de Kerouac nos anos 1950 foi uma sucessão de paradoxos - Foto: Jerry Yulsman/ Facebook

E, principalmente, a divisão em partes, mostrando a fracassada busca de um gnóstico pessimista; católico jansenista para Barry Miles, o que é corroborado pelas citações de Pascal. Tentou se redimir por haver abandonado Cassady nas ruas de Nova York através de “Visões de Cody”, em que exibe todos os modos de escrever, da transcrição de fitas gravadas até glossolalias e paráfrases de Joyce.

O período de escrita frenética de Kerouac nos anos de 1950 foi uma sucessão de paradoxos. São simultâneos “Os Subterrâneos,” sua “desleitura” de “Memórias do Subsolo”, de Dostoievski, com a apologia do sexo com Mardou Fox (Alene Lee), e “Tristessa”, com a fascinação por uma esquálida traficante mexicana, para ele santa, em quem não tocou. Sua companheira na época, a excelente escritora Joyce Johnson, relata em “Minor Characters” o encontro de Jack com Alene e a dificuldade em convencê-la a autorizar a publicação.

A estada no alto de uma montanha, o Desolation Peak, ganhou dois relatos antagônicos. Em “Os Vagabundos Iluminados”, êxtase em exuberante prosa poética (da qual Regina Weinreich recortou haicais). Em “Anjos da Desolação”, uma experiência sombria, um forte relato do confronto com o vazio. A versão biograficamente real é aquela de “Anjos da Desolação”: ainda retornaria ao México e viajaria à África e Europa, antes de isolar-se, para morar com a mãe e cuidar dela até o fim da vida.

Em “Coisas do Darma” (a sair), há de tudo: proselitismo budista, homofobia e misoginia, belas peças em prosa poética, instruções de como índios mexicanos se alimentavam de sementes - reproduzindo, sem saber, o que Claude Lévi-Strauss expõe em “O Pensamento Selvagem” e contrastando com o pantagruelismo em outras obras - e exultação por terminar o mais católico de seus livros, “Visões de Gérard”. E as colunas emparelhadas do Shakespeare da batalha de Azincourt em Henrique V e Ulisses, mostrando o Joyce shakespeariano e como ambos incorporavam a língua falada.

Enfim, mais que um autor a ser lido, um labirinto a ser percorrido.

Claudio Willer, poeta, tradutor e ensaísta. Autor de ‘Geração Beat’ e ‘Os Rebeldes: Geração Beat e Anarquismo Místico’

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