Às 22h17, Mario Prata atende a ligação. “Agora eu começo minha vida profissional”, revelou o escritor, sorrindo e bebericando um rum Havana 3. Era quinta-feira, 25, e o repórter do DMRevista havia dado por encerrado o expediente. Edição fechada. Caderno na gráfica. Minutos antes, sem preocupação laboral, o escriba abre uma cerveja, envia mensagem a Prata no WhatsApp perguntando se poderia lhe telefonar para fazer a entrevista e aguarda o retorno. “Sim! Ligue já”, diz ele, sucintamente.
Mario Alberto Campos de Morais Prata, escritor, dramaturgo, jornalista, cronista e autor de “Cordão Umbilical”, “Besame Mucho”, “E Se a Gente Ganhar a Guerra”, “Fábrica de Chocolate”, “Minhas Tudo”, entre as outras dezenas de obras das quais é autor, desembarca em Goiânia na segunda, 29, para participar da penúltima palestra dos Diálogos Contemporâneos, realizado no Teatro Goiânia, sempre às 19h. Dono de escrita banhada nas águas de um humor vibrante, onde se tornou observador de comportamentos da classe média, Prata é ligado à contemporaneidade.
Filho de Plinio Marcos e neto de Nelson Rodrigues, estreou no teatro brasileiro com “Cordão Umbilical” (1970), cujo espetáculo era conduzido pelo diretor José Rubens Siqueira, num texto que se identificava com os padrões da chamada “Geração 69”. “Não sei explicar por que a geração dos anos 60 foi tão brilhante, intelectual, política e culturalmente – sobretudo culturalmente –, com música, cinema, cinema novo, por exemplo. Isso tudo aconteceu naquela época. Acho que foi uma coisa internacional. Os Beatles surgiram no início da década e terminaram em 69. Foi exclusivo da ´época.”
No teatro, na música e na literatura, diz, a geração dos anos 60 já saiu consagrada. Ele conta que a galera sabia o que estava fazendo naquela época, mas eram atos corajosos. Vivia-se anos de chumbo, com milicos, liberdade de expressão cerceada, prisões, torturas e mortes: o sequestro do embaixador americano, por exemplo, foi feito com um Volkswagen Fusca e uma Kombi. “Minha geração fez isso. Taí vivo o Gabeira (Fernando Gabeira, jornalista), que não me deixa mentir.” Em “O Que É Isso, Companheiro”, lançado em 1979, Gabeira narra o episódio em que levou um tiro.
Os disparos foram efetuados por militares após o jornalista resistir à prisão, fugindo em direção a um matagal na cidade São Paulo. As balas atingiram-lhe as costas. Rim, estômago e fígado foram perfurados. Estava entre a vida e a morte. Perdeu sangue demais. Sentia dor, horrível. Na obra, com um estilo fluído e sedutor, Gabeira descreve ainda o sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, do qual participou como militante do grupo armado Movimento Revolucionário Oito de Grupo.
“É a explosão de vitalidade, esta densa, ainda imperfeita e entusiasmante vitalidade que se derrama sobre o teatro brasileiro. Deve ser visto." Jefferson Del Rios, crítico de teatro
Na estreia de Prata no teatro, como escreveu o crítico Jefferson Del Rios na Folha de S. Paulo em 13 de maio de 1970, o escritor exibia uma linguagem carregada numa vibração que se extravasava em contínuos trocadilhos humorísticos. Segundo Rios, em “Cordão Umbilical”, o dramaturgo fez um primeiro ato de risadas, onde mostrou sua gente, quatro adultos e um feto que se manifestava apenas no fim, dando um tranco violento na plateia. “É a explosão de vitalidade, esta densa, ainda imperfeita e entusiasmante vitalidade que se derrama sobre o teatro brasileiro. Deve ser visto."
Quando apresentou “E Se a Gente Ganhar a Guerra”, de 71, comédia dirigida por Celso Nunes, e “Fábrica de Chocolates”, oito anos depois, demonstrou – no primeiro espetáculo – uma sátira mordaz e repleta de irreverência. Prata voltou aos palcos, no final da década, numa peça que seria um símbolo do teatro de resistência, ao abordar as sessões de tortura a operários feitas pelos órgãos de repressão. Foi encenada pelo diretor moçambicano Ruy Guerra. Até então amordaçado e atrasado, o teatro começava a recuperar a função que lhe foi roubada durante os anos bravos de ditadura: a de contar os fatos urgentes da história brasileira.
"É a história de dois amigos que durante três décadas se amaram. Uma história de amor entre dois meninos, entre dois rapazes, entre dois adolescentes, entre dois homens que nasceram nos anos 60 e se sentaram no divã nos anos 70 com todas as culpas do mundo"
Mario Prata, escritor
Prata era o nome central desse movimento que resgatou o teatro do obscurantismo fardado. Seus textos dramáticos caminhavam de maneira rápida em direção a um teatro renovado, antenado às questões políticas, sociais e comportamentais. Se durante os anos 70, os dramaturgos não haviam sido Karl Marx, mas o colocavam nos palcos, quando veio a abertura política, todo mundo foi pego de surpresa. E agora? Foi essa pergunta que motivou “Besame Mucho”, que virou filme estrelado por Antônio Fagundes, José Wilker, Glória Pires e Christiane Torloni.
“Era um elenco global, né”, perguntou, retoricamente, antes responder ao repórter. O escriba lembro, por óbvio, a apresentação da peça. Maria, com uma voz de que se dedicou por décadas ao ofício do tabagismo, diz: “’Besame Mucho’ é sobre essas repressões. É a história de dois amigos que durante três décadas se amaram. Uma história de amor entre dois meninos, entre dois rapazes, entre dois adolescentes, entre dois homens que nasceram nos anos 60 e se sentaram no divã nos anos 70 com todas as culpas do mundo”, disse Prata, cuja obra foi publicada pela editora L&PM.
Infância
Nascido em Uberaba (MG) em 11 de fevereiro de 1946, Mario Prata se relaciona com a escrita desde a infância. Sua mãe lia, tinha amizade com o escritor Fernando Sabino. Seus primos possuíam antecedentes literários. Ela também escrevia crônicas num jornal de Lins (SP), mas Prata garante que nunca quis se tornar um trabalhador das palavras, pois o ofício à época era marginalizado. Até que, aos 14 anos, uma redação despretensiosa no colégio, na qual se enrolou todo com a pena, pena da morte, viu que levava jeito para a coisa. Zerar o texto, zerou. Mas foi elogiado pelo padre que lhe ministrava aula.
“Eram trinta linhas e eu escrevi duas. Fui ao escritório dele. Ele disse: ‘tive que dar zero porque eram trinta linhas, mas adorei a tua criatividade.’ Esse cara começou a me dar livros, que não eram os receitados aos alunos, chatos naquela época, como José de Alencar e Machado de Assis”, recorda-se, ressaltando que esses medalhões da literatura eram um saco naquele momento. Aos 18 e 19, escrevia crônicas para a Gazeta de Lins que eram “uma merda” e preocupadas “com as coisas Deus”. Tempos depois, no entanto, passou no concurso do Banco do Brasil e se mudou para São Paulo.
Mesmo gerente do BB, cargo que exerceu durante oito anos, prestou vestibular para economia na USP. Nesse tempo, não abandonou a literatura. O primeiro livro, “O Morto Que Morreu de Rir”, foi publicado em 1969. No ano seguinte, veio a peça “Cordão Umbilical”. Com o sucesso do espetáculo, Mario Prata resolveu que o melhor era deixar de lado os estudos, a comodidade do serviço público e dedicar-se ao ofício de escrever. E, de posse da grana dos direitos da peça, o escritor comprou um Fusca.
Segundo Prata, seu futuro era ser presidente da Petrobrás, como colegas de escola foram. A reviravolta, porém, aconteceu quando o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) quebrou o cenário e bateu “pra caralho” no elenco da peça “Roda Viva”, espetáculo de resistência durante a ditadura dirigido por José Celso Martinez Corrêa. “Jogaram a Marília Peça pelada na rua pegada, sangrando. Foi um pessoal que achava que o comunismo ia dominar o Brasil. Eram uns débeis mentais do Mackenzie”, conta.
O escritor ficou amigo da turma ligada ao teatro e conheceu autores, atores e atrizes. “Eu comecei a frequentar os restaurantes da classe teatral. Quando ocupamos a faculdade, em 1968, 1969, por aí, eu comecei a escrever uns contos e foram publicados por meio de mimeógrafos, no centro acadêmico. Como eu já o frequentava, comecei a vender. Escrevi uma peça. E ela deu certo. Se ela tivesse dado errado, não tinha acontecido nada. E, muito metido que era, larguei banco da faculdade”, lembra.
Apadrinhado por Millôr Fernandes em “O Pasquim”, o escritor publicou no jornal de resistência quando boa parte da redação havia sido encarcerada, em 1970. Vivia-se o auge da ditadura militar, com a imprensa amordaçada, opositores presos, torturados. Boa parte dos quais, inclusive, jamais apareceram. Mas, com os jornalistas Paulo Francis, Luiz Carlos Maciel e Tarso de Castro no xilindró, houve um movimento de artistas como Chico Buarque e Caetano Veloso que começaram a enviar textos para o tabloide carioca. Por conta disso, a publicação seguiu aporrinhando os fardados.
“Comecei a mandar umas crônicas pro Millôr – todo mundo escrevia, escritor ou jornalista começou a mandar texto pro “Pasquim”. Foi muito bonito. A gente queria que o jornal persistisse. Vendia 150 mil exemplares por semana. Tenho grande orgulho de ter colaborado com o tabloide, pois ele marcou a imprensa”, conta Prata, que trabalhou também com o jornalista Samuel Wainer na “Última Hora”. Sua amizade com Wainer, com quem aprendeu a arte de entrevistar, é narrada em detalhes na biografia “Samuel Wainer, O Homem Que Esteve Lá”, escrita por Karla Monteiro.
Hoje, com obras com uma pilha de obras no currículo, Mario Prata se fixou como um dos cronistas mais importantes da atualidade, com presença garantida em coletâneas como “As Melhores Crônicas”, publicada por Joaquim Ferreira dos Santos, e “Boa Companhia”, organizada por Humberto Werneck. Prata pega o banal, transforma-o em arte, num texto bem-humorado que namora a literatura e o jornalismo. “A crônica teve várias épocas. Nos anos 50 e 60, foram os grandes cronistas. A gente pode acrescentar só o Luís Fernando Veríssimo”, explica, dizendo que o jornalista responsável por voltar com o gênero na imprensa foi Aluísio Maranhão.
Dostoievski fumado
Escritor que sempre tinha consigo um exemplar das “Obras Completas de Dostoievski”, o repórter não poderia deixar passar batido. Ora veja, Mario Prata, se essa obra andou por aí, viu Copas do Mundo, foi de Lisboa a Caracas, qual é a importância de fumar maconha nas páginas escritas por um autor? Ele, gargalhando, aconselha: “Eu acho que se o Dostoievski ficasse sabendo que eu o fumei ia rir muito. Ninguém vai me fumar porque não se faz mais livros, com papel fininho. Não é a qualidade do autor. Aquela sedinha era maravilhosa. Cola bem”, ensinou o escritor.
Antes que o entrevistador pudesse tomar notas e dar a entrevista por encerrada, Mario Prata ainda confessa: “Jamais imaginei que algum jornalista ia me perguntar sobre isso. Cheguei a uma idade que não posso esperar isso. Fumei Dosta muito.” Rimos, o repórter do DMRevista comentou sobre música ou literatura, falou que precisava desligar porque a boca encontrava-se seca e uma cerveja viria a calhar e que lhe encontraria nos Diálogos Contemporâneos, no Teatro Goiânia. Prata, com sua verborragia e seu humor, continua terrível. Sorte da crônica brasileira.