Seja na lauda jornalística ou nos versos, o escritor Carlos Drummond de Andrade erotizou as palavras e delas tirou, por entre frases construídas com deliciosa habilidade e saborosa inquietude estética, a matéria-prima que lhe fez passar longe de ser um homem qualquer. Embora Drummond assim se reconhecesse e gostasse de ser, sua obra aponta à direção contrária: “No Meio do Caminho” afrouxou o nó da gaveta parnasiana que apertava o colarinho do poema, vestiu uma bermuda e parou no botequim para reverenciar “Pelé, o Mágico” e “Garrincha, o Encantador”.
Os textos, publicados no antigo Jornal do Brasil em 1971 e no extinto Correio da Manhã no ano de 1964, mostram uma faceta drummondiana que é pouco falada. Seu lado cronista, que os leitores deste DM puderam acompanhar nos anos 1980, numa coluna publicada nas páginas do DMRevista ilustrada por Jorge Braga, versava sobre o samba que penetrava na universidade e extraia lirismo dos pratos do dia nos restaurantes. Não tinha jeito, Drummond dominava o verbo como Garrincha ao entortar seus marcadores nas Copas de 58 e 62, sobre as quais o poeta deu seus pitacos.
Nascido na cidade de Itabira (MG) em 1902, Drummond gozava de menos recursos econômicos que seus colegas literatos. Cursou Farmácia (o habitual seria Direito) e terminou um casamento que não lhe possibilitara ascensão social. Mas o jovem escritor levava jeito com as palavras e, ao conhecer Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Mário de Andrade, com quem logo começou a se corresponder, pode-se dizer que já estava à procura de modernizar a literatura ao mesmo tempo que a turma de 22.
Em seu primeiro livro, publicado aos 28 anos, Drummond – embora fosse tímido de doer e inexperiente profissional – compunha versos incomuns e que, a um só tempo, seriam definidores em sua poética anos mais tarde. Depois de deixar a Companhia das Letras e ir para a Editora Record, a obra drummondiana ganha nova edição, com projeto gráfico arrojado e acompanhado de textos assinados pelo escritor angolano Mia Couto, pelo intelectual indígena Ailton Krenak, pelo estilista Ronaldo Fraga e pela cantora Zélia Duncan, que situa os poemas dele no mundo contemporâneo.
Neste mês, pegando carona nas polêmicas em torno da Semana de 22, saem do forno quatro clássicos: “Alguma Poesia” (1930) “Sentimento do Mundo” (1940), “Claro Enigma” (1951) e “Antologia Poética” (1962). Para o editor-executivo Rodrigo Lacerda, a necessidade é trazer os versos de Carlos Drummond de Andrade para os mais jovens e ir além do público já habituado a ler poesia. “Os autores desses novos posfácios contam sobre o seu Drummond particular, o encantamento da descoberta, a memória afetiva relacionada ao poeta”, diz Lacerda à imprensa.
Não há espaço para muitas dúvidas. Os títulos evidenciam as preocupações da Record em apresentar o texto drummondiano para novos públicos, numa grande chance de contribuir para a formação de novos leitores. Como se lê pouco no Brasil, dada as condições de estímulo ao livro e à cultura, a atitude é louvável. Seja como for, a reedição das obras abarca o pulsar inflamado das correspondências entre Drummond e Mário de Andrade, ainda na década de 1930, até o balanço que o próprio poeta faz de seu trabalho, em “Antologia Poética”, publicado nos anos 1960.
Como diz Antonio Candido, nome seminal da crítica literária no Brasil, em “Inquietudes na Poesia de Drummond”, ensaio clássico que contextualiza “Sentimentos do Mundo” num cenário de turbulência sócio-política em meio à ditadura do Estado Novo e que, segundo o sociólogo Sérgio Miceli, o número de analfabetos chegava a 56,1%: “as perspectivas mais sociais do livro e as perspectivas mais pessoais de José parecem duas séries convergentes, formando esta culminância lírica.” Sem demorar, assim que batucava às laudas jornalísticas e poéticas, Drummond já impressionava, a exemplo do que fez em “Sete Faces”, de “Alguma Poesia”.
“Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai Carlos! Ser gauche na vida”, poetou, para no bem-humorado “Quadrilha” mandar: “João amava Tereza que amava Raimundo”. Nos primeiros livros, observa Mia Couto no posfácio da obra, Drummond encenava um confronto entre o mundo e a pessoa. Já Ailton Krenak perfila com precisão o poeta: “Drummond caminha entre nós, com suas palavras gentis e gestos de indizível graça, como se evitasse fazer algum desnecessário ruído.”
Segundo Miceli, Drummond fez da necessidade virtude autodidata e resguardou sua obra, desde a estreia com a chancela da Imprensa Oficial, de uma possível corrosão da máquina burocrática. “A geração modernista foi movida pelo sentimento de estar predestinada a contribuir na missão exaltante de conjunturar as ameaças à primazia do Estado. Tamanho desafio torna inteligível o desvelo com que a jovem guarda intelectual se ancorou no imaginário da mineiridade no intento de ilustrar a imagem da elite fragmentada”, diz Miceli, em “Lira Mensageira – Drummond e o Grupo Modernista Mineiro”, estudo recém-publicado pela Todavia.
Escritor de verso e prosa poderosos, Carlos Drummond de Andrade se tornou um clássico. É importante, contudo, que a Record não esqueça um talento importante da produção drummondiana: o amante das mulheres, sujeito que acreditava ser a vida do homem um “passeio ao longo das mulheres que ele amou ou que não entendeu.” Afinal, como ensinou Drummond, “o que se passa na cama é segredo dos amantes”.
Veja os livros de (ou sobre) Carlos Drummond de Andrade que estão no mercado
Alguma Poesia
“No meio do caminho”, “Poema de sete faces” e “Quadrilha” estão entre os poemas mais conhecidos de Carlos Drummond de Andrade. Mais inequivocamente do que em qualquer outra de suas obras, transparece a influência da Semana de Arte Moderna de 1922 e, sobretudo, de Mário de Andrade, com quem Drummond manteve uma farta correspondência literária. Preço: R$ 49,90
Sentimento do Mundo
Publicado em 1940, quando Carlos Drummond de Andrade tinha 38 anos, é seu terceiro livro de poemas, mas o primeiro escrito após a mudança para o Rio de Janeiro, então capital do país. No conjunto de poemas aqui reunidos, há também uma atitude política mais participativa e empenhada na transformação da realidade. Preço: R$ 44,90
Claro Enigma
Drummond tem seus textos fixados por especialistas, com acesso inédito ao acervo de exemplares anotados e manuscritos que ele deixou. Em “Claro Enigma, o leitor encontrará um posfácio do vencedor do prêmio Camões Mia Couto, e também bibliografias selecionadas de e sobre Drummond. Preço: R$ 44,90
Antologia poética
Até 1962, quando esta antologia foi lançada, a poética de Drummond, então com 60 anos, era formada pelos seguintes livros: “Alguma poesia”, “Brejo das almas”, “Sentimento do mundo”, “José”, “A rosa do povo”, “Novos poemas”, “Claro enigma”, Fazendeiro do ar”, “Viola de bolso”, “Viola de Bolso Novamente Encordoada”, “A Vida Passada a Limpo” e “Lição de Coisas”. Todos hoje são clássicos da nossa literatura. Preço: R$64,90
Lira Mensageira
A obra traz olhares sobre o modernismo paulista e a classe política na Era Vargas. Em ensaio com foco nas obras de estreia de Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e outros, Miceli traça um panorama do que seria a Semana de 22, cravejado de tensões que seriam diluídas na fortuna crítica posterior. Autor: Sergio Miceli. Editora: Todavia. Preço: R$ R$ 74,90