O repórter não é Zeca, cineasta marginal, criador do longa “Holisticofrenia” e de uma fila de filmes pornográficos. Esse cara protagoniza “Pornopopéia”, clássico da literatura contemporânea. E ao contrário dele, o escriba também não está sob a rebordosa de um ácido porreta e tampouco participou de uma “surubrâmane” na noite anterior. Limita-se à companhia de um café forte, fortíssimo, junto de cinco ou seis cigarros, para vasculhar tudo o que Reinaldo Moraes falou a jornalistas: sua experiência em traduzir Charles Bukowski e William Burroughs, os anos em Paris, como foi conhecer Júlio Cortázar, escrever “Tanto Faz”, “Abacaxi” e “Pornopopéia”.
São 8h15. Assim que saiu da cama, o jornalista preparou um café para despertar e esperar até às 9h, horário em que tinha combinado de conversar por chamada de vídeo com o escritor. Num primeiro momento, não deu certo: Reinaldo estava em seu escritório e, quando volta para a casa, costuma deixar o celular no bolso. Depois, marcamos às 14h30. Como anda a vida? “A boa notícia é que a vida continua”, reflete. O consagrado prosador descreveu ao repórter Claudio Leal no ano passado uma fibrilação arterial. Aos 69 anos, sentiu que chegava às sete décadas de vida.
“A saúde vai bem, bicho”, conta Reinaldo, 72, em entrevista exclusiva ao DM, após ter encarado uma UTI por três dias – o escritor estará nesta sexta-feira, 22, na Feira Literária de Anápolis (Flana), às 20h, para discutir a liberdade de criação versus a correção política. “Saí bem. Fiquei sem beber por um certo tempo. Fui, aos poucos, voltando a frequentar bares com meus amigos. É o tipo da coisa que eu não poderia fazer, mas estou fazendo”, confessa – rindo – o autor de “Tanto Faz”, clássico da literatura brasileira dos anos 1980 que ganhou uma reedição em 2011 pelo selo Má Companhia na qual foi acrescido de “Abacaxi”, romance que saiu em 1985.
Se o gonzo Hunter S. Thompson disse numa zoada entrevista à Paris Review que só escrevia após assistir a vídeos de zoofilia, Reinaldo é mais comedido: trabalha em duas etapas criativas, dividindo-se entre o bêbado e o operário, acompanhado por uma cerveja e às vezes um cigarro de artista. “À noite, ou fim da tarde, descarrego a informação, aperto a descarga e vai muita bosta embora”, confessa. De manhã, desperta, toma café preto, "forte pra caralho", junto de pão e manteiga, e vai revisar a descarga literária. “Escrever é a coisa mais anti-erótica que existe: fode com as costas."
Segundo o jornalista Álvaro Costa e Silva, um ano de vagabundagem em Paris fez de Reinaldo um escritor. Mas, pondera, não nada foi fácil. Na quinta aula de planificação econômica soviética, ele decidiu que aquilo não daria certo. Deitava-se às quatro da manhã e três horas depois precisava estar na faculdade em que caíra de paraquedas (bem em cima da hora, um colega desistira de viajar) por causa de um convênio com a Fundap, empresa na qual trabalhava em São Paulo. Morria de sono, estava com tédio e foi chamado para uma conversa franca no café Montparnasse, em que o professor citou até o escritor Louis-Ferdinand Céline.
"Escrevi ‘Tanto Faz’ tem quarenta anos. Morava em Paris. Tinha bolsa de estudos. É comum o primeiro livro de um cara ser meio autobiográfico, porque ele vai escrever sobre aquilo que está mais próximo dele"
“Escrevi ‘Tanto Faz’ tem quarenta anos. Morava em Paris. Tinha bolsa de estudos. É comum o primeiro livro de um cara ser meio autobiográfico, porque ele vai escrever sobre aquilo que está mais próximo dele”, diz o escritor ao repórter, lembrando que muita gente também usa essa base autobiográfica e, ao sabor da escrita, vai inventando personagens e situações. Na obra, por exemplo, Ricardo de Mello, que protagoniza o enredo, chuta a bolsa “para o caralho” e se entrega ao hedonismo: “não foi o que fiz. Fui lá cumprir ritos acadêmicos. Tinha uma cobrança. E, na hora de escrever, achei interessante criar uma espécie de ‘Macunaíma.’”
Perto dos trinta, Ricardo largou um trampo burocrático na capital paulista para rumar à cidade em que Henry Miller escreveu “Trópico de Câncer”, com um ano de bolsa num curso de “planificação econômica para basbaques do terceiro mundo”. No entanto, a palavra lhe seduzia, lhe chamava, e ele foi a ela. O personagem vive uma vida desregrada, com álcool, haxixe, pó, até um pico de heroína rola, além das dezenas de mulheres que vão entrando e saindo de sua vida. “Não sou cowboy nem cangaceiro. Quero ser um dândi suave, feminino, distraído. Mulher entre as mulheres. O lésbico de que falava o Baudelaire”, debulha-se Ricardo.
“Não sou cowboy nem cangaceiro. Quero ser um dândi suave, feminino, distraído. Mulher entre as mulheres. O lésbico de que falava o Baudelaire"
Para o crítico literário Paulo Werneck, na turma da qual faz parte Reinaldo Moraes, estão Marquês de Sade, Henry Miller, Voltaire, Rabelais e Manuel Antônio de Almeida. São eles, segundo o crítico, que Ricardo evoca em “Tanto Faz” para narrar sua temporada de pós-graduação em putaria, lirismo bêbado e libertinagem nas ruas parisienses. “O mesmo pícaro, ainda mais doidão, “descasca” Nova York e Rio em ‘Abacaxi’, antes de voltar para São Paulo. Muito já se escreveu sobre o fascínio que foi ler esses dois ícones da contracultura em plena abertura política”, comenta Werneck.
Transgressor para a época? Um bocado. Mas ninguém pode dizer que as duas obras não revelaram o talento de um grande escritor, com seu compromisso em afrouxar o nó que revestia o colarinho da linguagem para colocá-la nos bares e nos quartos entre casais libertários: Reinaldo Moraes, nesses romances, mostrou-se capaz de promover um cruzamento hilário entre aquilo que se chama de alta e baixa cultura. A obra foi publicada pela Brasiliense, a mesma de "Feliz Ano Velho", de Marcelo Rubens Paiva, e "Morangos Mofados", escrito por Caio Fernando Abreu.
"Bukowski se identificava como poeta. Acho que esse foi o primeiro livro de prosa dele: o cara contava suas trepadas, seus porres, suas brigas, o jeito que ele chutava o mundo"
Seus mestres? Para o repórter, Reinaldo Moraes faz questão de evocar Oswald de Andrade, autor de “Memórias Sentimentais de João Miramar” e “Serafim Ponte Grande”, e Charles Bukowski, com seu “Notas de um Velho Safado”. “É uma espécie de biografia selvagem. Bukowski se identificava como poeta. Acho que esse foi o primeiro livro de prosa dele: o cara contava suas trepadas, seus porres, suas brigas, o jeito que ele chutava o mundo. Nenhum dos valores burgueses entravam na cabeça dele. Pensei: ‘Vou misturar Oswald com Bukowski e foda-se’. Quando voltei, ninguém queria editar”, rememora o escritor, que só foi lançar outro romance em 2008.
Nessa época, após anos escrevendo tanto que não conseguia sequer publicar um romance, Reinaldo Moraes voltou com um junkie porra-louca que se mete em zilhões de tretas, mete-se em enrascadas e mete até na mulher do melhor amigo, num texto mediado pela velocidade do pó, cadenciado pela maconha, molhado à breja e regado à Jack Daniels. E tudo isso, nas palavras do próprio autor ao jornalista Arnaldo Bloch, com uma visão caleidoscópica e confusa da cultura. Assim era José Carlos, o Zeca.
“Quando saiu o “Pornopopéia” fiquei com medo de ler e não gostar. Além de ser grosso, muitas páginas. Mas li e fiquei enlouquecido: pra você ter uma ideia (diz ao repórter), tava no Rio de Janeiro, lançando um livro. Entrou o Peninha (amigo) e disse ‘porra, como o Reinaldo Moraes tem coragem de escrever aquele livro’”, disse o cronista Mário Prata. Já o escritor Xico Sá, num bate-papo com o escriba no ciclo de Palestras Diálogos Contemporâneos no Teatro Goiânia, afirmou que o romance é um clássico contemporâneo. “Mas não ganhou prêmio porque tem uma pegada erótica.”
Depois de nove anos sem lançar um romance, Reinaldo Moraes publicou em 2018 “Maior Que o Mundo”, obra em que narra a história do escritor Cássio Adalberto. Mas Kabeto, como é conhecido, não consegue escrever uma linha do novo livro. Está sem lançar nada há dez anos. Tem dificuldade em encontrar a primeira frase. Persegue-a, e nada. Numa sexta-feira, à noite, cruza a cidade até o boteco no qual é cliente cativo. Carrega um gravador, onde capta suas impressões. E o personagem, aos poucos, é desvendado para o leitor, entrando na cabeça do cara e conhecendo seus pensamentos.
"Peguei aquele roteiro, achei que ia ser um passeio no parque, que ia tirar a forma roteiro, com suas rubricas, locação, tempo, dia e noite, dar uma limpada: acontece que comecei a ter ideias, personagens, um monte de páginas na cabeça. Quando vi, passaram-se cinco anos”
“Para ‘Maior Que o Mundo’, imaginava uma trilogia. Foi uma loucura. Foi uma espécie de piração minha. Em 2013, fiz roteiro para um cara, um jovem cineasta, e bolei a história do escritor que está em bloqueio criativo. O roteiro ficou meio grande, assustador, com 200 páginas. Achei que não ia filmar. Na véspera da pandemia, ele conseguiu, meio na sorte. Peguei aquele roteiro, achei que ia ser um passeio no parque, que ia tirar a forma roteiro, com suas rubricas, locação, tempo, dia e noite, dar uma limpada: acontece que comecei a ter ideias, personagens, um monte de páginas na cabeça. Quando vi, passaram-se cinco anos”, conta Reinaldo Moraes.
E a segunda parte da obra, Reinaldão, à quantas anda? “Consegui acabar há pouco e estou revisando. Tô tentando decidir se vou partir para o terceiro volume ou vou matar a fatura nesse segundo. Vai ser uma trilogia de dois volumes (risos). Eu acho que, se tudo ocorrer bem, o lançamento será no segundo semestre do ano que vem”, adianta o escritor, em entrevista ao DM. Afinal, nunca é demais retornar ao velho Carlos Drummond de Andrade: “oh! Sejamos pornográficos/ (docemente pornográficos).”