Cultura

Lygia soube, como ninguém, se comunicar em público com o curioso literário

Estadão Conteúdo

Publicado em 3 de abril de 2022 às 21:00 | Atualizado há 4 meses

Silviano Santiago

Especial
para a Agência Estado

No dia 25 de janeiro de 1977, a escritora Lygia Fagundes Telles viaja a Brasília para entregar a Armando Falcão, ministro da Justiça, um manifesto assinado por 1046 intelectuais e artistas brasileiros.

Está
acompanhada da colega Nélida Piñon e do historiador Hélio Silva. No documento,
pede-se o fim das restrições à liberdade de expressão e dos constrangimentos na
criação artística.

Estamos
em pleno regime Geisel e, nos bastidores do Planalto, sova-se o “Pacote de
Abril”, a ser imposto à nação por decreto. O ministro se mostra indiferente ao
teor reivindicativo do manifesto e afirma que, “com serenidade e firmeza”,
manterá o exercício da censura. Poucos conhecem essa faceta pública da notável
ficcionista paulista.

No Rio
de Janeiro, Carlos Drummond de Andrade lê os jornais do dia e por eles espreita
os passos atrevidos de Lygia. Em carta datada de 16 de fevereiro, o amigo e
admirador felicita-a pela coragem: “Estou acompanhando pelos jornais o
movimento desencadeado pelos escritores e artistas, no qual você desempenha um
papel de responsabilidade consciente, indo a Brasília para entregar o papel à
fera”. Em seguida, o mineiro matreiro matiza o ceticismo que lhe é proverbial
(o poeta se abstivera de assinar o documento):

“Era de se prever que o documento não modificasse a atitude do governo, mas um resultado positivo se alcançou: ele se sentiu obrigado a explicar-se, percebeu a importância do pronunciamento e pela primeira vez reconheceu a existência de uma opinião de classe contrária à censura”.

Capa
Carlos Drummond de Andrade era admirador de Lygia Fagundes Telles – Foto: Divulgação

Naquele
início de ano, Drummond também acompanha a imagem de Lygia na telinha. Ouve
suas palavras e, reminiscente das artimanhas do velho DIP, percebe o uso pelo
arbítrio da tesoura e da mordaça. Ao final da carta citada, lamenta o exercício
impune da serenidade e firmeza ministerial: “Incrível a mutilação do seu
programa no Globo Repórter!” E acrescenta: “Mesmo assim, o que sobrou deu para
se divulgarem algumas verdades. Gostei. E ver você na TV é uma maneira de matar
saudades”.

Num
século em que com frequência o gosto pela política na madureza asfixia o
encanto juvenil pelas artes, é extraordinário que a destemida mensageira da
classe seja defensora do artesanato artístico e uma apaixonada da arte
literária. Com obra ficcional admirada pelos pares e pelas novas gerações,
Lygia é ainda quem melhor soube se comunicar em público com o curioso das
coisas literárias.

Posso
atestar que, em auditórios localizados nos quatro cantos do país e do mundo,
sua presença física é luminosa e suas palavras, apesar de serem rigorosas e
valentes, são apreendidas e sorvidas com espanto e deleite em virtude da paixão
que as sustem. Ao microfone ou em entrevista, não se esconde em evasivas.
Oferece a espinhosa receita da iguaria que oferece:

“Ler,
ler, ler. Escrever, escrever, escrever, e rasgar muito. Eu rasguei muito”. E,
fincada nos mitos do dia, aconselha aos aspirantes ao estrelato: “Se você
pretende ser dançarina, ou se você quiser ser a ginasta Daiane dos Santos, vai
ter que trabalhar muito”.

À
participante política e defensora do trabalho de arte se soma a intelectual que
reconhece o caráter discricionário do “chamado à literatura”. Da perspectiva de
quem quer ser autor, repetia, “escrever é uma vocação”.

Chamados
haverá muitos, no entanto, poucos serão os escolhidos, reza a letra do
Evangelho. Manifestação obscura da humildade e da esperança humanas, a vocação
abre e acelera o mistério que une o caráter do escritor e suas palavras à
sensibilidade e à mente do leitor. “Se não houvesse leitores, ainda assim você
escreveria?”, pergunta-lhe Edla Van Steen em 1981. Lygia rebate. O leitor e seu
compromisso com a boa literatura são cria do estofo do escritor, do seu sangue.
Explica-se: “Se o autor está oco ou desesperado, não vai conseguir a
cumplicidade do seu próximo. Fará um trabalho esvaziado, morno”.

Lygia se
perfila com Nietzsche. No capítulo “Ler e escrever”, de “Assim Falava
Zaratustra”, está dito: “De tudo o que se escreve só gosto daquilo que se
escreve com o próprio sangue. Escreve com o teu sangue e descobrirás que o
sangue é espírito”.

Ainda sobra alguma tinta na paleta do retratista, e não servirá para emprestar colorido apenas circunstancial à figura humana, embora assim se goste de creditá-lo. Lygia é mulher que, em sociedade patriarcal, adota três profissões de homem. Advogada, escritora e membro da Academia Brasileira de Letras.

Lygia Fagundes Telles | Enciclopédia Itaú Cultural
O desgaste do desdém crítico já transparece nas leituras consagradoras de “Ciranda de Pedra” (1954) e não se justifica por a romancista ter adotado uma escrita objetiva – Foto: Arquivo Nacional/ Correio da Manhã/ Divulgação

Modesta,
a promotora pública destaca a preeminência das primeiras escritoras, elas sim,
“verdadeiras malditas a arrebentarem seus espartilhos”. Perspicaz, a
artista de sucesso lembra como se desgastou o tópico crítico que julgava a
escritora brasileira narcisista, preocupada com a própria face, com o umbigo.

O desgaste do desdém crítico já transparece nas leituras consagradoras de “Ciranda de Pedra” (1954) e não se justifica por a romancista ter adotado uma escrita objetiva, tradicionalmente masculina, mas por ela ter ido até às raízes históricas do patriarcalismo e por nelas ter encontrado “a razão do feitio monologal e intimista” da escrita feminina. Irônica ou auto-irônica, a acadêmica acrescenta que não há que se ter vergonha de a “mulher-goiabada” ter sido estrela nas quermesses do interior paulista.

E menos
vergonha deve sentir a escritora por ter recebido dela a tradição de
ensimesmamento no trato carinhoso com o alimento sob as chamas. Por pouco que a
mulher-goiabada se distraísse, o doce pegava no fundo do tacho. O trabalho
doméstico fundamentou as invenções do olhar criativo da mulher e as reenviava
ao belo rosto afogueado pelo calor da invenção literária.


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