Sua boca – como ela disse num depoimento ao produtor Ronaldo Bôscoli publicado na revista Manchete em 1977 – é uma cortina. Os lábios, delineados com cuidado e esmero, reforçam uma marca que ficou gravada na memória musical coletiva. E isso é tão forte que chegou até a se tornar um desenho no fundo da piscina da casa em que morava no Rio de Janeiro, residência habitada de meados dos anos 1970 até a metade da década de 1980. Era uma época de desbunde, da mulher libertando-se.
Gal Costa, 76, esbanja uma capacidade de reinventar-se. É sua marca. A carreira pautou-se por rupturas. Paradigmas foram quebrados. Em 68, sob tempestades e céu nublado, aconteceu a primeira delas: com colar no pescoço, cabelão black power e um canto que era – na mesma medida – agudo e transgressor, Gal defendeu a música “Divino Maravilhoso” no 4° Festival de Música Popular Brasileira na TV Record, ficando em terceiro lugar. Dois anos depois, lançou o elepê “Gal Costa”, das faixas “Cinema Olympia”, “Tuareg” e “Meu Nome é Gal”, um dos clássicos da tropicália.
Aos desavisados, Gal tem 56 anos de carreira e, neste sábado, 21, às 21h, no Teatro Rio Vermelho (Rua 4, 1400, Centro), apresentará para o público goianiense um pouco de um repertório consagrado, cheio de hits e belas músicas. No show, suceder-se-ão hinos de Milton Nascimento, Chico Buarque, Caetano Veloso, Dorival Caymmi e Tom Jobim. Pode-se esperar também composições que fazem parte do lado B da discografia da cantora, mas o que é certeza no setlist são os hinos “Fé Cega, Faca Amolada”, “Paula e Bebeto”, “Solar”, “Desafinado”, “A História de Lily Braun” e “Gabriel”.
“Eu sou todas as Gals juntas, não dá para desvincular uma da outra, mesmo que sejam em projetos que eu não tenha me envolvido, como na biografia fotográfica e no filme”, diz Gal ao Diário da Manhã. No livro “Gal Costa”, ela tem suas facetas revelas pelo jornalista e produtor musical Marcus Preto, pelo poeta e designer Omar Salomão e também pelo crítico musical Leonardo Lichote, cujas imagens, garimpadas em arquivos de jornais e revistas, perfilam-na bem. A obra, já disponível para venda no site da editora BEĨ, sai por R$ 145,00. Apesar do preço, para os fãs, é uma relíquia.
Pelas fotos, compiladas em pesquisa conduzida por Arlindo Hartz e Renato Vieira, revela-se uma Gal reservada na vida íntima. Mas assim que segura um microfone, como se estivesse abrindo a janela de sua alma para o público, tudo faz sentido. É por meio do canto que ela encanta. Com a voz, estabeleceu revoluções, apontou o dedo à caretice brasileira e, seguindo o passo das grandes divas, formou uma geração de cantoras. Marília Mendonça a admirava. Juntas, gravaram “Cuidando de Longe”, considerada uma das melhores músicas lançadas pela tropicalista nos últimos anos.
“Eu gosto de trabalhar e gosto muito do que eu faço. A música é importante para mim porque me dá equilíbrio. Eu vou trabalhar até quando puder. O atual momento da minha carreira é estar no palco e já pensar em coisas novas”, conta Gal. Neste ano, o elepê “Fa-Tal – Gal a Todo Vapor” completa meio século. Não à toa, trata-se de um petardo, com músicas assinadas por Luiz Melodia, Roberto Carlos e Erasmo Carlos. O show de lançamento, que teve direção de Waly Salomão, ocupa a condição de símbolo de uma época em que fumava-se maconha, tomava-se ácido e, ao diabo que carregue os milicos, vivia-se no posto 9, na praia de Ipanema, point da contracultura.
O lado A do disco apresenta músicas compostas por sambistas tradicionais, como Ismael Silva e Geraldo Pereira. Já na outra parte, com guitarra, baixo e bateria, numa sonoridade influenciada pelo rock´ and roll, ouve-se o grito agudo de Gal que ecoava como uma revolta contra o contexto político do Brasil fardado. Havia também canções de nomes que ainda iriam despontar, a exemplo de Novos Baianos e Jards Macalé. Nessa fase, dos álbuns gravados entre 1969 e 1971, nota-se uma destreza vocal que a permitiria ir do canto contido da bossa nova à estridência janisjopliniana.
Segundo o crítico Mauro Ferreira, numa resenha sobre o disco publicada em abril, “Fa-Tal – Gal a Todo Vapor” mostra uma artista que, à medida que a banda entrava em cena ao longo da faixa “Vapor Barato”, fazia-a ter seus minutos bluseira. “É retrato luminoso da arte do Brasil na idade das trevas, obra-prima da discografia brasileira cuja importância transcende a questão musical. Decorridos 50 anos do lançamento do disco, a luz de ‘Fa-Tal’ ainda ofusca o obscurantismo que, insidioso, tenta em vão se impor em 2021”, analisou o pesquisador musical, referência na história da MPB.
Ainda tropicalista? Sem dúvida. “Eu me sinto ainda uma tropicalista. A prova está nos últimos discos que fiz. Acho que ser tropicalista é buscar sempre o novo, não ficar na zona de conforto”, diz Gal, que no ano passado lançou o sensível e delicado disco “Nenhuma Dor”, disponível no streaming. “Tudo o que eu fiz está perfeitamente inserido na minha história como cantora. Acredito que isso se dê pelo fato de eu gostar de ousar sempre. É um coisa de ímpeto mesmo, da minha personalidade.”
Arriscar? É sinônimo de Gal. E fazer coisas novas também. “Sinto muito prazer em não ser igual em todos os trabalhos. Meu projeto é trabalhar até quando eu puder, cantar até quando Deus quiser”, reflete a cantora, acrescentando que a escolha do repertório que ela tocará na capital goiana foi estruturada a quatro mãos. A ideia e os convidados? Foram-lhe trazidos por Marcus Preto. O trabalho deles? Já conhecia e, por isso, achou ótimo. “O ponto central é que foram escolhidos cantores, homens, influenciados pelo meu trabalho, pelo meu canto. E eu fico emocionada com isso.”
Para ela, é importante artistas de uma geração se conectarem com outras e, de certa forma, transmitir seu legado. “Eu mesma tenho uma grande influência de um homem, que é o João Gilberto, a estética do canto dele, a maneira que ele canta, me atraiu muito. Como eu disse, é muito legal ver que esses artistas se inspiram em mim.” No ano que vem, com ansiedade, chegará o filme “Meu Nome é Gal”, em que a atriz Sophie Charlotte (uma fã de carteirinha) vive Gal Costa. Ainda está nas filmagens.
Além do show, como contrapartida da Lei Federal de Incentivo à Cultura, serão realizadas duas oficinas gratuitas com participação dos músicos da banda de Gal Costa dedicadas a alunos de música, estudantes e professores da rede pública. Não perca. Porque Gal, como sempre, estará a todo vapor. O teatro Rio Vermelho vai brilhar. (Colaborou Rariana Pinheiro)
As Várias Pontas de uma Estrela
Teatro Rio Vermelho – Goiânia
Dia 21 de maio de 2022, sábado, às 21h
Classificação indicativa: 12 anos
R$ 50 (vale-cultura)
R$ 125 (meia-entrada)
R$ 250 (inteira)