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Assimetrias Ordinárias: considerações sobre a poesia de Alda Alexandre

O livro Assimetrias Ordinárias, de Alda Alexandre, é o primeiro livro solo de poemas da autora e, também, o primeiro editado por sua recém criada editora, Rebellium Coletiva. É com esse gesto de ousadia que a autora / editora lança-se no mercado editorial. Trata-se de um projeto poético despretensioso, na extensão, mas cheio de sutilezas, no conteúdo. Ao todo, a obra conta com oitenta páginas, das quais quarenta e sete delas estampa um poema, sem título. Cada poema pode ser lido isoladamente, ou como parte de um relato maior, que se equilibra entre a prosa poética e o poema em prosa. Embora, como observa a amiga e crítica literária, Letícia Ferro, na régua da contemporaneidade, isso pouco importa. Um único poema, entre os demais, é visualmente marcado pela espacialidade, aos moldes do concretismo. Esta é apenas uma entre as muitas marcas da poesia modernista brasileira na obra da autora.

O restante das páginas formam uma narrativa visual complementar. Algumas delas, carregam cores sólidas, vibrantes, que conferem uma atmosfera pop ao conjunto. Outras são cobertas por fotos de autoria da própria poeta. Nelas, observamos marcas de gestualidade da autora, “arquitetando rotas penosas”, experimentações com desenhos, ou mesmo a reunião de objetos que fazem parte do universo pessoal de Alda Alexandre, com “claras miudezas”. Essa reunião de pequenos objetos, em suas fotografias, não parece um simples acaso. Isso é, podemos supor, uma mensagem da autora sobre o seu próprio processo criativo. Como muitos poetas modernos e contemporâneos, ela nos mostra que a poesia se faz “ao rés do chão”, com as coisas mais simples, pois a poesia não está no que se diz, mas na maneira de dizer. Vemos, abaixo, como objetos comuns ganham vigor através da palavra poética da autora:

os prendedores de roupa

esquecidos na tela da janela

por um momento

me lembram pardais

me ignoram

mas inertes assim como eu

contemplam a vida lá fora

Observamos, que não há uma separação rigorosa entre as páginas com poemas e as páginas com imagens (lembrando que as imagens também podem ser “lidas” como poemas visuais). Em alguns momentos, as imagens invadem o espaço da página confinando o poema verbal numa estreita faixa lateral. Isso contribui com a ideia de assimetria, declarada no título do livro. Todas essas imagens, nas linhas de um scrapbook, apontam para o caráter autobiográfico da obra. A data que supostamente marca o início da escrita remete à forma dos diários: “em 31 de dezembro de 2019”. E, ainda, o poema de Beta(m)xreias, escolhido como epigrafe da obra, reforça essa visão: “...e são meus / os passos / a fazer o caminho...”

O título do livro traz, de saída, se não uma contradição, possivelmente, um pequeno incômodo. Parece haver um “desencaixe” entre os termos “assimetrias” e “ordinárias”. As duas palavras do título aparecem, na capa, atravessadas por uma linha, sugerindo, visualmente, um corte ou desencaixe. Consideramos, também, que, no campo das artes, no qual a autora parece transitar, as composições assimétricas mostram-se, com frequência, mais interessantes do que as simétricas. Talvez por isso, a partir de um eu poético predominantemente individual, a autora torna-se “esperançosa como a menina da live do Instagram” que “pinta os dois olhos assimetricamente”. De fato, podemos concluir, que não devemos esperar muito de comum na leitura da obra de Alda Alexandre. O pouco de ordinário que encontramos no livro, grassa tanto pela forma confessa de um diário, como da crítica do universo feminino que se impõe e/ou é imposto: “sangrava 40 dias até ser curetada num ambulatório frio”; “me disseram que eu era uma árvore seca / mas dou estranhos frutos”.

Escrever poesia em tempos difíceis não é tarefa banal, mas, talvez, seja o que nos salva. São nesses momentos, diz a poeta, que devemos “escrever até dar com a cara no muro”. A maioria dos poemas de Assimetrias Ordinárias, foram declaradamente escritos, durante os dois anos de isolamento social, trazidos pela pandemia da Covid-19. O livro é repleto de passagens que remetem ao isolamento social e aos novos hábitos sanitários instituídos naquele momento como, por exemplo, “eu mal tenho ânimo de acender a luminária / mas alcanço o frasco de álcool em gel e derramo nas mãos”. Afora isso, nesse período, já vivíamos num país mergulhado nas trevas de um recente governo de extrema direita. Esses dois fatores, associados, justificam os seguintes versos, em clara referência a Rimbaud: “e quem há de nos pagar / por essa temporada no inferno / graças aos idiotas de todas as esferas”. Nesse contexto, afirma a poeta, “existimos” e “essa é a vingança”. Contrariando os versos de Bertold Brecht, em “Aos que virão depois de nós”, que proclamam: “Aquele que ri / ainda não recebeu a terrível notícia / que está para chegar”, Alda Alexandre nos convoca, ironicamente, a gargalhar, “apesar das coisas todas” para que “nossa dor nunca vire impotência” e “pra que o silêncio não nos infeccione”.

Nos versos acima, a voz enunciativa pressupõe um “nós”, passando da subjetividade individual para uma subjetividade coletiva. Dessa maneira, problematizando a subjetividade relativa a um “eu” individual e autobiográfico. Em diversos momentos, a poeta promove uma identificação entre o eu poético e o leitor, causando o afastamento de uma leitura extremamente pessoal da autora. É o que ocorre nos seguintes versos: “nada temos a ver com Próspero / somos Sycorax, concebendo Calibã / e semearemos pelos milênios nossa maldição”. Do mesmo modo, vemos a marca da coletividade expressa no poema abaixo, no qual “o desejo nos crucifica”:

o desejo é nosso ponto de equilíbrio, às vezes

de fuga. nos marca pela presença, pela falta, pelo

excesso, pavimenta nossas vias. obsessão ou

anodinia, frenesi, seca brava, combustão, enxurrada,

todas as máquinas... nos crucifica

Podemos afirmar, no entanto, que, mesmo quando não há a presença de um “nós”, a poesia de Alda Alexandre consegue atingir algo de universal. É o que ocorre quando os sentimentos mais profundos se revelam, na poesia, e se alinham em concordância com a coletividade. Por essa razão, o amor, a solidão e o desejo, entre outros temas, são atemporais na poesia. Assim, podemos nos identificar com os seguintes versos: “meu desejo cancelado brilha”, e, também, “meu desejo / que já passeou por suas curvas / e agora segue outras rotas”.

Em adição, consideramos que o reconhecimento entre o “eu” da poeta e o do leitor se dá, pela via de sua inserção no mundo. O aqui agora/real em conjunto com a história recente manifesta-se através de vários intertextos que podem (ou não) provocar a identificação do leitor. A linguagem da poeta nos revela muito de seu arcabouço literário. Por exemplo, nos versos, “das rondas aleatórias” e “samplear frases de romance... é só mesmo para flanar”, percebemos marcas da modernidade literária. À semelhança do flâneur, conforme a concepção de Baudelaire, a autora, busca sua fonte de inspiração literalmente flanando nas ruas, e, sobretudo, na forma em que constrói sua escrita. Dessa forma, o sujeito vivido se confunde com a própria escritura.

Um reconhecimento mais acessível ao leitor encontra-se, talvez, na banalidade da linguagem, por vezes usada pela poeta, e, também, pelo uso de gírias, como, por exemplo, nos versos: “não tive forças para abrir o vinho com o saca-rolhas mixuruquinha”, ou “sibilante e poser”. É frequente, na escrita da autora, o uso duma linguagem que se refere às mídias digitais, “desativei o corretor automático”, “...até dei match no spotify”. Somando-se a isso, notamos inúmeras referências ao universo da música pop: “se eu fosse ouvir Madonna agora / teria que ser aquela com Massive Atack, I want you, para entrar num / fluxo atemporal”.

Como percebemos nesses últimos versos, exemplificados acima, na poesia de Alda, há a presença do anacronismo como manifestação da poesia contemporânea, nas linhas do que Célia Pedrosa pontua sobre a poesia de Antonio Cicero, em Considerações anacrônicas: lirismo, subjetividade, resistência. Pedrosa diz, que os poemas de Cicero são “provocantemente anacrônicos”, pois em sua produção há a inserção de movimentos midiáticos do pop-rock, o que reflete uma concepção diferenciada de contemporaneidade. Nesse sentido, nosso encontro com o intertexto musical da poeta, nos levou a um interessante movimento de colisão entre o passado recente e o presente. Isso, a nosso ver, aumentando a atmosfera de circularidade que o texto confere no passar dos dias, das horas, as incursões na memória passada e na instantaneidade do presente.

No mais, recorrendo aos versos de Micheliny Verunschk:

escrever І escrever І escrever І escrever І escrever como

quem desatina І um outro ciclo І uma outra lua І uma

outra língua І e voltar para o mesmo sempre início І

precipício І escrever como quem constrói um labirinto

Podemos dizer, ler, ler, ler, ler, ler a poesia de Alda Alexandre até que as sutilezas aflorem. Ler, ler até que as relações intersubjetivas deflagrem novas interpretações a cada leitura. Ler até chegar a resultados que escapam a estas nossas breves considerações sobre a poesia de Alda Alexandre.

Patrícia Ferreira, artista visual. É doutora em Estudos Literários pela UFG

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