Gabriel Nascente, 72, define-se como “um artesão da palavra”. Junto de sua fiel companheira Olivetti, em cujas teclas batuca a sobrevivência da poesia há 56 anos, tornou-se um acumulador de prêmios: Academia Brasileira de Letras, Cruz e Sousa, centenário de Henriqueta Lisboa da Academia Mineira de Letras e finalista do Prêmio Jabuti são láureas que lhe tornam um dos mestre dos versos. Bié, como o artista é chamado pelos mais próximos, recebeu também o título de embaixador da poesia brasileira, outorgado pela Academia Paraibana de Letras, em João Pessoa (PB).
Para o poeta, que esteve com Carlos Drummond de Andrade e Érico Veríssimo, escrever é a arte de costurar palavras. E foi assim, exercitando a solidão de sua mente, que teve a fortuna crítica de uma vida dedicada à poesia reunida em mais de mil páginas sob o título “A Árvore dos Escritos”. Ao longo dos anos, acostumou-se a empilhar elogios e chegou a ser reconhecido pelo Vaticano e gabinete militar de Fidel Castro, com tradução para espanhol, inglês, francês, romeno, russo, grego e italiano. Seu primeiro livro, “Os Gatos”, foi apresentado pelo editor Moacyr Félix, da Civilização Brasileira, ao lado de Ênio Silveira, notável intelectual esquerdista.
Segundo Drummond, a poesia de Gabriel “é viva e atuante”. O amigo Carlos Nejar o resumiu como “um poeta em estado frenético”. Já o jornalista Batista Custódio, fundador do semanário Cinco de Março (onde Gabriel começou a engatinhar no mundo das letras) e Diário da Manhã, o escritor é um “nômade onde estiver aqui entre nós. Vive do lado de fora desse mundo. Não mora na pessoa. Habita na alma. Gravita na órbita das ideias e no universo da mente. Viaja na inspiração, põe poemas no coração e brinca com sonhos no paraíso dos desejos escondidos no sentimento”.
Como jornalista, além de passar pela redação da Folha de S. Paulo, entrevistou as maiores personalidades do século 20. Nos anos de pólvora da ditadura militar, com o céu em estado permanente de trovoadas e tempo fechado, refugiou-se em Buenos Aires e, no apartamento do arquiteto Oscar Niemeyer, no Rio de Janeiro, chegou a marcar um bate-papo com o líder comunista Luís Carlos Prestes, fundador do Partido Comunista do Brasil. Neste Diário da Manhã, lá pelos idos dos anos 1980, destacou-se como âncora editorial do Suplemento Literário (LEIA).
E há anos, diz Gabriel, preserva o que acredita ser “um fraternoso e cordial relacionamento” com os imortais da Academia Brasileira de Letras (ABL) Arnaldo Niskier, Carlos Nejar, Antônio Carlos Secchim, Nélida Piñon, Cícero Sandroni, Evanildo Bechara, Domício Proença, Merval Pereira e José Sarney. À frente da Pinacoteca do Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO), organizou a obra “A Tribuna dos Magistrados”, na qual reúne discursos de posse dos desembargadores. O lançamento será nesta segunda, 27, às 17h. Gabriel assina o texto “Suba a Tribuna, Excelência!”.
Gabriel Nascente recebeu pela manhã da última segunda, 20, o Diário da Manhã em sua sala na Pinacoteca para falar sobre a labuta em direção à imortalidade, analisou os trâmites políticos para se conquistar uma cadeira na ABL, recordou experiência em participar da eleição do goiano Bernardo Élis e também comentou eleição de Gilberto Gil e Fernanda Montenegro. A seguir, confira os melhores momentos da conversa:
Diário da Manhã – Como está a sua situação na Academia Brasileira de Letras?
Gabriel Nascente – Eu gostaria de saudá-lo (diz ao repórter), com muita reverência e carinho que vocês têm, que a imprensa goiana tem, pelo nosso trabalho. Não fosse isso, talvez eu já estivesse soterrado no limbo da obscuridade e do anonimato.
DM – Se o senhor me permite, poeta, soterrado em quê sentido?
Gabriel – Quero falar o que está estalando na goela. A vida é uma fascinante viagem entre a praia do verão, que é o muro do êxtase, até a escuridão da carcaça do inferno. Estamos na mira de todo tipo de artilharia, de ataque e, lembrando a fábula da La Fontaine, a do vagalume e do sapo, que pulou em cima dele, para esmagá-lo. E ele, o vagalume, humildemente, com sede e tentando beber uma gotinha de água à beira do milagre, foi surpreendido por um cidadão que lhe perguntou ‘por que tu me esmagas’. E respondeu ‘por que tu iluminas’. Com isso, quero dizer que, especificamente em Goiás, desde menino, quando saiu meu livro “Os Gatos", em 11 de janeiro de 1966, aos 15 anos, existe uma elite literária que não engole a minha poesia.
DM – E quem é essa elite à qual o sr. se refere?
Gabriel – É uma elite reduzida, concentrada e está no grande meio universitário. As universidades, não sei por que razão, não possuem afinidade com a minha poesia. Nisso, eu nunca escrevi para ser aplaudido por eles e tampouco pela crítica, ao contrário.
DM – Mas a crítica até chegou a aplaudir o seu trabalho, não?
Gabriel – Não tenha dúvida disso. O meu livro “Árvore dos Escritos” conta com mais de 1,1 mil páginas e têm opiniões críticas sobre a minha obra, inclusive do Vaticano, do gabinete militar cubano de Fidel Castro. Pergunto, então, a você: faturei os melhores prêmios de literatura do Brasil, como o Cruz e Sousa de literatura, disputando e concorrendo com 800 autores inscritos na época. Era mil novecentos e noventa e poucos. Saí em primeiro lugar. Ganhei o prêmio nacional de poesia da Academia Brasileira de Letras (ABL). Ganhei o centenário de Henriqueta Lisboa da Academia Mineira de Letras. Fui finalista, segundo lugar, do Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, em 2001. Ganhei outros. Aí, veja bem, não é um desabafo, nem uma cobrança. Quero abordar a falta de originalidade e coleguismo entre os meus parceiros.
"Veja bem, não é um desabafo, nem uma cobrança. Quero abordar a falta de originalidade e coleguismo entre os meus parceiros" Gabriel Nascente, poeta
DM – Como foi essa história de o sr. ser convidado, porque me parece que é um processo sobretudo político se tornar imortal da ABL?
Gabriel – Já tem mais ou menos uns 15 anos. Foi por volta de 2010, por aí. O poeta, ficcionista, tradutor e crítico literário Carlos Nejar, meu amigo, esteve em Goiânia. Na ocasião, grandes personalidades que estavam na ABL, eram meus amigos. Essas coisas que eu estou dizendo é para mostrar que eu não sou um paraquedista em termos de Academia Brasileira de Letras. Então, se eu tenho uma experiência de caminhada ao longo de quase - ou mais - de 15 anos, não estou de brincadeira. Pleiteio uma cadeira e, ao longo desse estirão de sofrimento, de ida e vinda ao Rio de Janeiro, mais de 12 supostos amigos meus simpatizavam com a minha candidatura, dentre eles Ledo Ivo, Eduardo Portella, Antônio Olímpio, Ivan Junqueira e Ivo Pitanguy. O processo de eleição dentro da academia não é como, inocuamente, se anuncia e se apregoa por aí. Esse não é o caminho. O sistema eleitoral é conduzido hermeticamente por uma escolha quase que maçônica. São os imortais que escolhem. Não é o candidato que se inscreve. É natural que surjam correntes contrárias à unanimidade. Não existe unanimidade. Nem no Rio. Nem na superfície da água.
DM – O sr. trabalhou pela campanha do escritor Bernardo Élis à Academia Brasileira de Letras (ABL). Olhando pelo retrovisor, como foi essa experiência?
Gabriel - Saltando para Goiás e com a experiência que tivemos em trabalhar pela eleição de Bernardo Élis, eu - menino de vinte e poucos anos - pedia voto a Menotti Del Picchia e Jorge Amado. Trabalhamos, trabalhamos. Tem muita coisa que precisa ser corrigida. Por exemplo, quando o Bernardo estava em campanha, acompanhei-o ao Rio para derrotar Juscelino Kubitschek. Mas devo deixar bem claro que, na época, entendia que Bernardo deveria abrir mão em favor de Juscelino. Havia uma premonição em mim. Tentei lhe dizer ‘deixa o presidente ganhar que vem coisa melhor para você’.
DM – Ocorreu-me, enquanto ouvia o sr, perguntar-lhe se houve mudança em relação ao processo vivido durante a eleição de Bernardo Élis para a sua labuta hoje?
Gabriel - Sem modéstia e graças a um trabalho amistoso de acolhimento de muitos imortais, desfruto de ampla familiaridade, além de ser curioso que por anos, fui centro de uma “fofocaria” entre eles. Toda a irmandade, todo o colegiado têm suas intrigas, contrários, adversidades, suas pequenas hostilidades, suas tropas de farpas. Se o candidato não tem uma benção e nem um padrinho poderoso lá dentro, ele não chega. Não adianta. Não se ganha eleição por telefone.
DM – E o Gilberto Mendonça Teles é esse padrinho?
Gabriel – Não. A questão do Gilberto é a seguinte: quem o derrotou em suas três tentativas de entrar na academia foi ele mesmo, por causa da loquacidade egocêntrica dele, de ficar falando sobre a obra dele. Isso irritou os acadêmicos. Eles não gostam que você chegue e fique falando sobre você, sua obra, seu umbigo. Não é por esse caminho. Os acadêmicos querem um candidato que respeite a sua entidade e trabalhem por ela. Existe uma coisa absolutamente errada entre os componentes do exército do ressentimento. Não estou disputando uma obra na ABL em troca de troféu. Não procuro glória. E, em primeiro lugar, não acredito nessa estultice de posteridade. Procuro na ABL conseguir uma cadeira para que eu possa segura e solidamente trabalhar por ela e por ela trabalhar a expansão da poesia no Brasil e no mundo.
DM –Existe uma parte da historiografia que defende a tese segundo a qual a ABL não é levada a sério desde Machado de Assis. O que o sr. pensa disso?
Gabriel – É natural que tenha isso. E não é só lá, não. Na Academia Goiana de Letras também tem isso. O Pedro Nava, que foi meu amigo, reumatologista número um do Brasil, saía do Brasil para ensinar medicina aos americanos. É um mineiro, memorialista ímpar. Escreveu “Baú de Ossos”, “O Galo das Trevas” e outros livros. Quando fui entrevistá-lo, em seu apartamento no bairro da Glória, nós falamos sobre a Academia Brasileira de Letras do ponto de vista dele. Talvez porque não tivesse sido convidado a disputar uma cadeira. A exemplo de outros que foram e nunca aceitaram, notoriamente Carlos Drummond de Andrade e Érico Veríssimo, que também foi meu amigo. Almocei com Veríssimo na casa dele durante os anos 1970, quando vinha de Buenos Aires. Mas Nava falou ressentido. Gostaria de entrar na ABL. Falamos, na conversa, de Mario Quintana, que tentou várias vezes, e não conseguiu.
"Almocei com Veríssimo na casa dele durante os anos 1970, quando vinha de Buenos Aires. Mas Nava falou ressentido. Gostaria de entrar na ABL. Falamos, na conversa, de Mario Quintana, que tentou várias vezes, e não conseguiu"
DM – Ruy Castro diz uma coisa interessante: esses modernistas que o sr. citou rechaçavam a ABL e, por causa deles, passou-se a vê-la como “museu”. Fico pensando que vai da vontade do autor lutar pelo ingresso na ABL, não?
Gabriel – Até onde tenho conhecimento de bastidores, de seu funcionamento e dos segredos, escuto certas coisas de pessoas idôneas, como o professor Arnaldo Niskier, que me orienta muito. Eles têm na Academia Brasileira de Letras certas coisas que são inerentes às demais entidades. É de direito internacional, por exemplo, a ABL todo ano indicar um autor para disputar o prêmio Nobel de Literatura. Às vezes, a academia cita, por exemplo, Nélida Piñon, grande romancista. Do outro lado, tem o Carlos Nejar, poeta, ensaísta, também autor de romance. E ele já acha que deve ser o indicado. Mas vamos falar de Goiás: só teve um único representante até agora? Bernardo Élis morreu em 97 e, de lá pra cá, não teve outro. Então, eu pergunto: com ou sem alarde, com esse trabalho meu, que apoio tenho aqui? Se sou membro da Academia Goiana de Letras, será que não seria o caso dela própria fazer um movimento de apoio literário?
DM - A eleição de Gilberto Gil e Fernanda Montenegro dividiu opiniões entre os “escritores de ofício”. O sr. não acha que, sendo Gil um dos maiores cantores de nossa música e Fernanda é uma para a qual Nelson Rodrigues escreveu a peça ‘Vestido de Noiva’, é facilmente justificável o ingresso deles?
Gabriel – O fato é que no estatuto da ABL existe um artigo que diz mais ou menos o seguinte: “é facultável eleger-se eventualmente celebridades que mais se destacaram na música, no teatro, no cinema, na política, na ciência, na arquitetura. Aí como faz? É uma coisa deles. Não sou contra. Aliás, não sou contra a eleição de ninguém.
DM – O sr. foi à posse de Gil, né?
Gabriel – Claro, fui. Gil me surpreendeu, porque a gente é muito miúdo diante dessas celebridades da Música Popular Brasileira. Fui cumprimentá-lo na sala vip, onde ele estava dando entrevista à imprensa antes da posse, e ele me chamou pelo nome. Me agradeceu a presença. Me agradeceu pelo livro que enviei. E, depois, conheci o motorista dele, que pediu para me levar ao aeroporto. Então, não sei se é um dom da minha humildade, não dou conta de roubar estilo de vida alheia, nem de me pousar como imperador. Sou carroceiro. E nem artesão da palavra.