Pedro Ludovico Teixeira (1891-1979) não falhava uma vez. Às duas da tarde, nunca sem dispensar seu elegante terno de linho, Ludovico cumprimentava as pessoas, sentava-se à poltrona e, até subir os créditos, ficava com os olhos compenetrados à tela grande. Seus cinemas favoritos eram o Cine Teatro Goiânia e o Casablanca, este hoje um templo da Igreja Universal, no Centro. E, certa vez, uma gangue de garotos custosos atirou-lhe talco e o interventor de Getúlio Vargas, criador da capital goiana e ex-governador de Goiás, ficou com a vestimenta na altura das costas toda branca.
Quem fazia parte dessa molecada? “Eu”, recorda-se, aos risos, o jornalista, poeta e produtor cultural Carlos Brandão, numa descontraída entrevista concedida ao DM nesta quinta-feira, 14. Nascido nos anos 1940, Brandão chegou a Goiânia no final dos anos 60, ou seria no começo da década de 70?, época na qual existiam dezenas de cinema espalhados pela jovem metrópole, seja no Centro ou na velha Campinas: Cine Teatro Goiânia, Casablanca, Santa Maria e Cine Campinas eram alguns deles. “O cinema era o grande ápice da noite”, lembra, ao repórter, o cineasta Ângelo Lima.
Naquele tempo em que os Beatles eram uma santidade, o cinema novo revelou que a fome era estética e a ditadura calava quem ousasse dizer qualquer coisa que lhe desagradasse, o cinema de rua teve uma importância grande para Goiânia, revelada para o Brasil por meio de um Batismo Cultural que completou 80 anos no início deste mês. A história é narrada, com depoimentos de valor histórico, pelo escritor Ubirajara Galli na obra “A História do Batismo Cultural” (Contato Comunicação), que durante anos assinou a coluna Historiografia Goiana, publicada semanalmente nas páginas deste DMRevista.
O Batismo Cultural, para efeito de contextualização histórica, define os eventos planejados para apresentar a nova capital goiana ao Brasil e ao mundo. Ao todo, foram dez dias de festa, com missas, congressos, exposição de artesanato, almoços, peças de teatro e filmes. Entre os longas-metragens projetados na solenidade, estão “Divino Tormento”, um drama musical dirigido por W.S Van Dyke e estrelado pela atriz Jeanette MacDonald e pelo ator Nelson Eddy, dois expoentes de Hollywood daquela época. Outra que marcou presença foi a atriz Eva Todor com “Deus Lhe Pague”, uma das rainhas do teatro, da TV e do cinema brasileiros.
Para Ângelo, que mora em Goiânia desde 1959, o cinema sempre foi a grande história goiana. “Goiânia foi criada com um Batismo Cultural, uma das poucas cidades que tem um Batismo Cultural. Isso é importante demais”, afirma o cineasta, que lançou em maio deste ano “Quando Ouço Falar em Cinema, Me Visto de Charlitos”. “Eu sempre falo que o cinema é um templo. É um lugar em que você entra e fica escuro, onde você fica ligado com a tela. É um ensinamento. E aí você está ligado com a tela. Antigamente não tinha celular, então não havia esse negócio de ficar atento com a luz. Coisas absurdas.”
“A gente assistia às sessões das duas, das quatro e das seis. Depois da última, se você perguntasse para qual filme passou e qual era a história, a gente não sabia” Carlos Brandão, jornalista, poeta e produtor cultural
Ângelo lembra que, quando o programa das pessoas era ir ao cinema, colocava-se as melhores roupas, com terno, gravata e vestidos sofisticados. No Cine Teatro Goiânia, à noite, não entrava sem o traje formal. “O cinema precisa ser respeitado. Você entra nele pra você assistir a uma obra que o cara passa às vezes dez anos para fazer aquilo. Aí você assiste a um filme que pode transformar sua vida. Eu gostava muito do Cine Goiânia e Cine Casablanca. Era mais bem localizado, mais perto da minha casa. Morava no Setor Sul”, diz o cinéfilo, fã de Glauber Rocha e François Truffaut.
Entre rolos que eram transportados de bicicleta pelo Seu Brás do Santa Maria ao Casablanca, complexa operação que faziam os filmes ser simultâneos, isto é, eram exibidos em dois lugares diferentes e em horários distintos, os cinemas começavam às 14h, com sessão às 16h e às 18h. Havia quem, naturalmente, ficasse da primeira à última. No Santa Maria, com filmes mais populares, os garotos aproveitavam para se esconder e, sem nenhum olho inconveniente à vista, se masturbavam. Seria um prenúncio de que, anos depois, esses espaços se tornariam cinemas pornográficos?
Para Carlos Brandão, que gostava do Cine Teatro Goiânia, a resposta é sim. “A molecada, que tinha uma gangue do Setor Sul da qual eu fazia parte, gostava do Goiânia. A gente assistia às sessões das duas, das quatro e das seis. Depois da última, se você perguntasse para qual filme passou e qual era a história, a gente não sabia. A gente ia mesmo pra fritar. Gostava de lá, gostava muito. Igual se vai ao shopping hoje, se ia ao cinema”, diz Brandão, um dos nomes mais importantes da cultura goiana.
Sobrevivente da pandemia, Cine Ritz enfrenta barra pesada
Único cinema de rua da capital, o Cine Ritz enfrentou uma barra: atravessou a pandemia, endividou-se, sentiu o amargor de quase ter as portas abaixadas em definitivo. No entanto, se provou valente e, hoje, o Ritz aposta nos blockbusters em detrimento às produções autorais. Mas em 2018, com uma saúde financeira melhor, possibilitou-se a exibição de “O Último Tango”, dos cineastas Pedro Diogenes, Luiz Pretti e Ricardo Pretti. E agora, aliando grandes produções com outras autorais, viu-se descoberto e, além disso, frequentado por amantes do bom cinema de rua.
“Dos que ficaram passando filmes regulares, eu acho que o Ritz tá ficando por bravura mesmo, porque tudo agora é shopping: as pessoas parecem que têm medo de andar na rua. O Centro nunca foi revitalizado”, afirma o jornalista, poeta e produtor cultural Carlos Brandão, destacando que os prefeitos que passaram pela cidade não tiveram nenhum interesse em trazer restaurantes, bares e bons cinemas para o Centro. Enquanto não for revitalizado, as pessoas terão medo de ficar assistindo filme na região. Mas, com essa redescoberta da Rua do Lazer, tem muita gente indo ao Ritz.
Mesmo assim, a previsão a respeito das salas de projeção à moda velha se confirmaram. Para o crítico de cinema Fabrício Cordeiro, do Cine Cultura, a derrocada do cinema de rua acontece por uma razão que, segundo ele, é lógica. “Um shopping oferece várias opções de compra em um único lugar, então as pessoas podem planejar várias coisas de uma só vez, inclusive ir ao cinema”, analisa Cordeiro, em depoimento que saiu no artigo “Era Uma Vez Um Cinema: As Salas Que Deixaram Saudades”, publicado no site da Universidade Federal de Goiás (UFG), em 2010.
Segundo a arquiteta Thais Duarte Oliveira Julião, o cinema é um meio que tem potencial para promover uma experiência de sociabilidade única, reunindo a sociedade num encontro de lazer e contemplação. “Entretanto, além de jovens, o cinema também é bastante frequentado por adultos e crianças, desta forma, o edifício atenderá a esse público com conteúdos cinematográficos para cada faixa etária”, pontua a estudiosa, na pesquisa “Cinema Urbano”, disponível na biblioteca virtual da PUC-GO.