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'A Viagem de Pedro' faz monarca parecer macho tóxico

Dom Pedro I vira macho tóxico pelas lentes de Laís Bodanzky. Em “A Viagem de Pedro”, filme que entra hoje nas salas de cinema pela rede Cinemark, o imperador está a bordo do navio inglês Warspite e, cercado por água, começa a refletir sobre a vida que viveu no Brasil, desde sua chegada de Portugal junto dos pais, em 1808, até sua partida, acelerada por razões políticas, pela sua atuação no Poder Moderador e pela rixa entre conservadores e liberais.

Com olhar feminino, a cineasta tenta retratar o monarca na intimidade e contextualiza os fatos. Para uns, Pedro nada mais foi que um destemido ou boêmio irresponsável. Mas o fato é que, com fervor, dedicou-se à política, exibiu grande carisma, teve caso com muitas mulheres e demonstrou suas contradições. Ao mesmo tempo, se dizia liberal e admirava Napoleão Bonaparte, que havia obrigado o pai a fugir da Europa. Ele tinha uma prática autoritária de poder, conforme demonstra o jornalista Laurentino Gomes, em “1822”.

No ano da Independência, quando partiu para o litoral paulista a fim de resolver disputas que envolviam o ministro José Bonifácio de Andrade e Silva, Pedro sofria com um forte desarranjo intestinal desde que saíra do litoral paulista. O tal grito? Não houve. Foi uma lenda, aliás, incentivada pela elite paulistana, que começava a endinheirar-se por causa da indústria da indústria cafeeira: era preciso, na visão deles, colocar São Paulo no roteiro do do mito e pôr na cabeça das pessoas para a posteridade sua importância ao Brasil.

O drama histórico, protagonizado pelo ator Cauã Reymond, estrutura-se em torno do regresso de Pedro I à Europa, em 1831, após abrir mão do trono no Rio de Janeiro em nome do filho, Pedro 2°, que mandou no Brasil até 1889. A bordo do navio, com o auxílio da fotografia assinada por Pedro J. Marquez e direção de arte comandada por Adrian Cooper, “A Viagem de Pedro” recorre à ficção para mostrar os pensamentos, as angústias, as recordações e, claro, as frustrações do monarca enquanto ele cruzava o Atlântico.

Esses lugares-comuns, ou melhor, essa geografia humana, é o que o filósofo francês Michel Foucault define como heterotopia. Bodansky esforça-se para mostrar o monarca como um sujeito atormentado, numa tentativa de fazer a ficção cobrir um vazio historiográfico, já que não há documentos sobre os meses que compreendem o embarque dele no Rio até seu desembarque na França. Ponto para o roteiro escrito pela cineasta. Gol bodanskyano.

Se nove anos antes ele acatou as reivindicações das províncias, das lideranças e da maçonaria de ser o imperador constitucional do Brasil, isto é, exercer o cargo com limites impostos por uma Constituição, em 1831, preso numa fragata inglesa, o ex-imperador quer encontrar forças físicas e emocionais para conquistar o poder que lhe foi usurpado pelo irmão em Portugal, mas está doente, deixa visível sua fraqueza, embarca atrás de uma pátria e busca reviver - ainda que pouco - as glórias que experimentara em outrora.

Sua primeira mulher foi Maria Leopoldina, morta cinco anos antes da embarcação. Pedro lembra dela, ela lhe atravessa a alma, faz sentir culpa pela relação mantida com a amante Maria Domitila, arrepende-se por tê-la machucado com seus atos violentos. Como já foi largamente documentado pela historiografia, Pedro nutria um insaciável apetite sexual, relacionando-se com escravas, damas da corte, mulheres casadas e dançarinas - de acordo com Laurentino, até com freira no convento chegou a manter relações de ordem erótica.

Mas, num estado aterrorizante, o monarca precisa conviver com um fracasso que atinge os homens e do qual eles querem fugir: a impotência. Nesta época da embarcação, Pedro estava casado com Amélia e, nas horas em que está sem fazer nada, repara nos trabalhadores escravizados e tenta, junto deles, conseguir algum tipo de medicamento para lhe “curar”.

Coprodução brasileira e portuguesa, o longa esbanja elenco internacional. E até o alemão falado por Leopoldina, a partir da voz suave e ritmada de Luise Heyer, ajuda a dar credibilidade às memórias do imperador, que está bem à tela na pele de Cauã, e é também a presença feminina que, muitas vezes, justifica a visão que Laís Bodanzky procurou dar ao filme, tornando-o mais em sintonia com o século 21. Tacada de bilhar, coisa de mestre.

Por que? Imaginem só: século 19, perspectiva branca, masculina… Por isso, erra quem atribui ao filme a pecha de reforçar o patriarcado, o machismo, o racismo e, a partir disso, imprimir uma visão elitista Quer sacada melhor que o absolutista broxa, ou brocha, Aurélio e Houaiss aceitam as duas grafias para o fracasso masculino? Antes de mais nada, “A Viagem de Pedro” merece ser visto com um olhar contemporâneo, sem esquecer, contudo, que sua diretora criou “Como Nossos Pais” e “Bicho de Sete Cabeças”.

A Viagem de Pedro

Laís Bodanzky

Cauã Reymond, Vitória Guerra e Rita Wainer

Drama histórico

14 nos

Disponível na rede Cinemark

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