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Godard irritou Sarney com polêmico filme

O cineasta Jean Luc-Godard, morto hoje aos 91 anos, gravou o nome na história recente da democracia brasileira. Um dos maiores expoentes da nouvelle vague, Godard irritou o presidente José Sarney com o longa-metragem “Eu Vos Saúdo, Maria” (1985), proibido no Brasil a mando do primeiro presidente civil após 21 anos de ditadura militar. Sarney recorreu, na ocasião, à Constituição para vetar a obra, embora a decisão tenha levado em consideração o papa João Paulo 2° e a CNBB.

Para a igreja, precisava ser “assegurado o direito de respeito à fé da maioria da população brasileira”. Afinal, na cabeça dos religiosos, quem poderia usufruir do monopólio narrativo eram exclusivamente eles, ao que soava como uma blasfêmia a premissa godardiana: trazer para o século 20 a história de Maria, mãe de Jesus Cristo. No filme, ela trabalha num posto de gasolina e namora um taxista que se chama José. Incluindo o roteiro, as cenas de sexo revoltaram os fiéis.

O episódio chegou a mobilizar setores da cultura brasileira, como o cantor Roberto Carlos, favorável à mordaça, e o titã Nando Reis, que tirou de um artigo escrito pelo ‘rei’ na Folha de S. Paulo os versos de “Igreja”, do disco “Cabeça Dinossauro”. Em Goiânia, estudantes do Instituto de Ciências Humanas e Letras, antigo ICHL, da Universidade Federal de Goiás (UFG), exibiram o censurado longa-metragem, mesmo com a polícia na cola deles.

  • 'Uma Mulher é Uma Mulher'

Notório pela sua filmografia revolucionária, à esquerda e sempre radical, Godard figura dentre os cineastas mais importantes daquela geração da nouvelle vague por ser autor de clássicos como “Acossado” (1960), que o projetou para o mundo. A película persegue a história de uma jovem norte-americana em Paris, interpretada pela atriz Jean Seberg, e o amor que sente por um jovem condenado em fuga por praticar delitos, papel do ator Jean-Paul Belmondo, que se tornaria uma das estrelas planetárias do cinema.

“Acossado”, que revolucionou a sétima arte, fez de Godard um dos diretores mais criativos do mundo. Afinal, durante os tempos em que foi crítico da revista francesa Cahiers du Cinéma, enalteceu as qualidades dos filmes produzidos e montados de forma clássica. Anos depois, teorizou que a direção e a montagem eram, a rigor, as mesmas coisas. Nada demais, no entanto, para alguém que tinha definido conceitos fílmicos para câmera, som e narrativa.

Segundo o cineasta, uma “história deveria ter um começo, um meio e um fim, mas não necessariamente nesta ordem”. Também dizia que um “filme era como um diário pessoal, um caderno ou um monólogo feito por alguém que tenta justificar”. O mentor dele na Cahiers, além de também ter sido o de Truffaut e Chabrol, era o crítico André Bazin, responsável por afirmar que a realidade é a realidade especial, isto é, são fenômenos visuais e os espaços que o cercam. Bazin criou a teoria realista moderna do cinema.

Godard acreditava que tudo se dava à base do improviso: acordava, tomava as notas e decidia o que filmaria. E dava o trabalho por encerrado quando sentia que não havia mais nada a fazer no dia. Foi assim que nasceu “Acossado”, um filme que chegaram a dar como impossível de montar. Não só deu certo, como o longa virou o que virou: um clássico.

Talvez seja aquele que melhor introduz um desconhecido ao universo godardiano. Ali o cineasta, segundo o crítico Inácio Araújo, libertou o cinema das convenções que lhe cercavam e o prendiam. Com apenas um filme, sem precisar de mais nada, tornou-se nome indispensável para a história dessa arte. Mas não parou por aí: fez ainda “Uma Mulher é Uma Mulher”, “Viver a Vida”, “Bando à Parte”, “Pierrot Le Fou” e “Made In U.S.A”.

Como um filme era sempre diferente do outro, Godard mudaria de vez a maneira de fazer cinema e refletir sobre o mundo com uma câmera nas mãos em “A Chinesa”, ao retratar uma estudante francesa, vivida por Anne Wiazemsky, que forma um grupo com amigos da universidade para debater política. Todos são adeptos do maoísmo. Até que, cansados da dialética, decidem tomar atitudes extremas contra o que eles consideravam injustos.

Nos anos 70, deixou de lado o cinema comercial e passou a fazer filmes em sintonia com a luta de classes. Então aderiu ao mundo das séries, com “Seis Vezes Dois” (76), “France, Tour, Détour, Deux Enfants” (77). Após realizar uma série de produções definidas por estudiosos como ‘cinema-ensaio’, retornou ao circuito comercial com “Salve-se Quem Puder”. Nos últimos anos, após apresentar em Cannes no ano de 2001 “um libelo contra os que ignoram a história”, conforme definiu a Folha, dedicou-se a filmes-colagens em que falava sobre guerras, de socialismo, da ascensão do neoliberalismo e da América - estão no Youtube.

Para o cineasta Quentin Tarantino, numa entrevista em 1994, Godard fez ao cinema o que Bob Dylan fez à música. O cineasta optou ontem pelo suicídio assistido, segundo disse a família ao jornal francês Liberation. Na Suíça, onde morava desde os anos 1970, a prática é legalizada. Por causa de Jean Luc-Godard, o cinema nunca mais será o mesmo.

Saiba quais filmes de Godard estão no streaming

Acossado, de 1960

O primeiro longa, baseado numa história de François Truffaut. Onde assistir: Apple TV (aluguel ou compra)

Viver a Vida, 1962

Anna Karina, que foi mulher do diretor, é sublime como Naná, que se prostitui e, sem consciência da própria miséria humana e social, chora no escurinho do cinema assistindo. Onde ver: Mubi.

O Demônio das Onze Horas, 1965

A imagem célebre - Jean-Paul Belmondo e Anna Karina trocam aquele beijo, cada um na direção de um Cadillac em sentidos contrários. Onde ver: Paramount+

A Chinesa, 1967

Godard antecipa Maio de 68 trancando num apartamento um grupo de estudantes que bradam slogans revolucionárias. Onde ver: Telecine

Je Vous Salue, Marie, 1985

Myriem Roussel como a estudante que trabalha como frentista num posto. Ela tem um namorado taxista. É virgem. Aparece um tal Tio Gabriel, que diz que ela está grávida. Onde ver: Globoplay

Fonte do box: Agência Estado

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