Numa proposta ousada e provocativa, como a própria arte, um grupo de artistas e ativistas propõe uma nova forma de olhar para um prédio abandonado, que se tornou um símbolo tanto da memória quanto do abandono.
Buscando criar um museu de arte urbana em meio aos desafios da memória coletiva, surgiu uma iniciativa disruptiva que transforma a percepção sobre arte e preservação. Assim nasceu o Museu do Depois do Amanhã.
Com um acervo riquíssimo registrado por fotografias e exposto no mundo virtual, o Mudda não busca ocupar espaços ou invadir locais para se estabelecer. O movimento visa aproveitar as estruturas abandonadas enquanto o tempo se encarrega de dissolver paredes, deteriorar o corpo sólido do local, e segue criando formas através de infiltrações e da corrosão do descaso.
O Diário da Manhã esteve no local com os idealizadores do Mudda: Glauco Gonçalves, doutor em geografia urbana (USP), professor/pesquisador (UFG) e artista; Henrique de La Fonte, empresário e fotógrafo; e Robert Valentim, despachante de licenciamento de eventos, que explicaram o projeto e a intenção do movimento. Eles destacaram que o Mudda não é apenas um convite para artistas registrarem suas expressões, mas também um esforço para desenvolver um trabalho de curadoria da história da edificação.
A partir daí, com entrevistas, pesquisas e registros, o Mudda cria um acervo de memórias que captura os dias de ouro vividos pelo local até sua lenta e contínua deterioração. "Como o tombamento não foi possível, pelo menos que deixe o prédio para nos lembrar do que o abandono pode fazer," comentou Glauco, e completa: "O prédio, apesar de sua situação precária, ainda é habitado, o que adiciona uma camada humana e viva à narrativa do abandono."
Tudo começou com uma simples observação no dia 6 de junho de 2022. "Eu passei em frente ao prédio e vi o potencial," relata Glauco. "Eu estava andando de bicicleta, olhando para lugares abandonados e comecei a investigar. Entrei de bicicleta e explorei o espaço. O Henrique, que mora perto, recebeu uma ligação minha sobre o prédio. Ele, que é fotógrafo, sugeriu: 'Vamos lá'. E assim começamos experimentando e descobrindo o espaço."
O Deslançamento
"A gente não sabia o que fazer de início, experimentando uma coisa, experimentando outra. Então, a Roberta e o Luiz chegaram, e começamos a fazer uma série de intervenções," continuou ele. A evolução levou à participação em exposições e ao desenvolvimento do conceito do museu, uma aprendizagem contínua de habitar e ressignificar o espaço desolado.
Com o tempo, a equipe percebeu a singularidade do lugar. "Depois de muito tempo aqui, percebemos que isso é especialmente um museu muito único. Esses painéis, essas áreas têm uma beleza e poesia própria," explicou Robert "A concepção de encontrar beleza e arte nos espaços mais absurdos se tornou nossa tarefa."
A antiga sede da Celg e Seduce
O prédio em questão é a imponente sede da extinta Centrais Elétricas de Goiás S.A (Celg), privatizada em 2017 pelo ex-governador de Goiás, Marconi Perillo, e vendida para a Ente Nazionale per l'Energia Elettrica (Enel), uma multinacional italiana. Localizado na Avenida Anhanguera, o prédio, após a venda, acabou sendo alugado para o Estado, para abrigar a antiga Secretaria de Educação, Cultura e Esporte (Seduce). Desde a mudança da sede da Seduce, o edifício está à própria sorte.
Projetado pelo engenheiro civil Oton Nascimento e construído com área total de 3.800,00 M2, entre os anos de 1956 – 1958, apesar de ser merecido e estudado, o tombamento do edifício não foi possível. "Preferiu-se gastar dinheiro removendo o painel decorativo, facilitando a descaracterização do prédio e abrindo caminho para sua futura demolição," explicou Robert. Entretanto, os idealizadores do Mudda veem nesse prédio uma oportunidade única de reflexão sobre o futuro e a memória urbana.
O painel mencionado, uma obra de 9,00m x 4,00m, intitulada ‘Energia Elétrica: a origem, a invenção e o usufruto’. do Frei Nazareno Confaloni, que foi vandalizado no local original. Posteriormente, ele foi removido e transportado para o Centro Cultural Oscar Niemeyer (CCON), onde deveria passar por um processo de restauração com duração prevista de até um ano, mas até o momento, informações indicam, que não foi concluído.
O espaço tornou-se um ponto de convergência para artistas marginalizados, que encontram ali um local de reconhecimento e catalogação de suas obras. "Estamos tentando catalogar essa centena de grafites e intervenções, nomeando-os quando os artistas desejam," explicou De La Fonte. Performances, clipes e instalações diversas coexistem no local, refletindo a diversidade e a efervescência artística.
O futuro do prédio é incerto, mas o grupo busca antecipar sua possível demolição digitalizando o máximo possível do acervo e mantendo o espírito do museu vivo. "O que estamos disputando aqui é o sentido da cidade," diz Glauco. "A proposta é, acima de tudo, uma chamada à atenção para novas possibilidades urbanas, mesmo em meio ao constante desmoronamento."
Memória e preservação no Mudda
Para o Mudda, mesmo que o prédio venha a desaparecer, a essência do museu - a memória e a arte do abandono - continuará existindo, ainda que de forma digital e temporária. "Assim, como um 'museu do caos' permanece como um testemunho vivo da luta contra o esquecimento e a favor da preservação das memórias urbanas," comenta Robert.
Em meio aos escombros dessa morte gradativa do sólido, como um corpo em decomposição, o conceito da arte ganha contornos de observação, intervenção humana e expressão artística. As diversas salas ainda conservam a beleza no envelhecimento, com grafites e lambes espalhados pelas 'galerias', em cores e formas etiquetadas para o reconhecimento das obras.
Criadas por artistas de várias idades, vivências e etnias, as diversas intervenções mostram que a arte é independente de padrões ou regras, sobrevivendo, mesmo que temporariamente, em paredes que desabam lentamente.
A equipe é ampla, incluindo grafiteiros consolidados de Goiânia, adolescentes, grupos de mulheres e iniciantes na arte. Essa diversidade de idades e experiências reflete o movimento e a interação entre diferentes vertentes.
Além disso, há interesse em produções audiovisuais, tanto documentais quanto ficcionais, para registrar as histórias dos grafiteiros cujas obras muitas vezes passam despercebidas.
A vida que persistente
Chama atenção a decoração natural que se manifesta, resistindo, nas mais diversificadas plantas que nascem entre os tacos de madeira e pisos, existindo e buscando a sobrevivência, mesmo nos lugares mais inusitados, no segundo pavimento.
"Esse prédio não cai fácil, estão tentando derrubá-lo há muito tempo, mas ele resiste," comenta De La Fonte, referindo-se ao prédio que já sofreu vandalismos e outras tentativas de degradação. "Eles querem derrubar este prédio há anos, mas ele resiste, assim como as pessoas que circulam aqui."
De La Fonte adverte a necessidade de ter cuidado ao circular pelos ambientes por causa dos cacos de vidro e outros materiais da estrutura que está se desfazendo. "Não há acessibilidade," diz ele, "é preciso que as pessoas que queiram vir ao Mudda estejam cientes disto." "Gostaríamos muito de trazer artistas e o público inclusivo," continua, "mas não há elementos que garantam que esse espaço seja viável a todos."
O projeto também ressalta a importância de reconhecer e catalogar as obras de artistas marginalizados que têm suas expressões artísticas espalhadas pela cidade. “Esses artistas são marginalizados, mas não suas obras. Eles merecem ser reconhecidos e valorizados,” explica Robert.
O trabalho também tem um valor antropológico e sociológico muito significativo, que está em movimento e não na edificação. "Temos mais de 300 etiquetas que colocamos para categorizar as obras," disse Glauco. "Esse é um trabalho antropológico, sociológico, documentando as marcas do tempo e as intervenções humanas." explica, e completa, "a gente acredita que o movimento vai se ampliar e ganhar visibilidade. A concepção de encontrar beleza e arte nos espaços mais absurdos se tornou nossa tarefa. Além de transpor o limite para uma discussão sobre que é arte e sobre a memória urbana."
Com uma equipe técnica voluntária que inclui: beta(m)xreis - Antropóloga, Poeta, Artista e Psicanalista; Glauco Gonçalves - Doutor em Geografia Urbana (USP), Professor/Pesquisador (UFG) e Artista; Henrique de La Fonte - Empresário e Fotógrafo; Luiz da Luz - Jornalista e Videomaker; Robert Valentim - Despachante de Licenciamento de Eventos; o Mudda possui um espaço virtual: https://www.mudda.com.br/ em que os idealizadores explicam ser a verdadeira sede do Mudda, onde acervo e a história do prédio estão à disposição dos visitantes, além das redes sociais onde são divulgados os eventos e os chamados aos artistas.
Eles salientam que o espaço físico no prédio é temporário, funcionando 24 horas por dia para quem quiser criar suas obras ou conhecer os trabalhos dos artistas. Não há intenção de permanência, pois o propósito do projeto não é fixar raízes, mas estar aberto a outros locais e intervenções culturais e artísticas no futuro.
O MUDDA é um projeto de extensão vinculado à UFG e conta com o Apoio da Universidade Federal de Sergipe e da Universidade Federal de Goiás.
O próximo evento "Fav visita Mudda" acontece no domingo, dia 30, a partir das 14h.
Programação:
14h30 - Roda de conversa
15h - Apreciação, exploração e ocupação do espaço por artistas