Sai um salve do som. Suingue, pulso, ritmo. Samba-rock, Jorge Ben. E sem o Jor. Não sei muito bem o que dizem essas palavras faladas pelo cara, nunca as compreendi exatamente, se me perguntarem, não sei responder, já sabem. Contudo, me felicito escutando o zunido desse violão. Podia parar por aqui. Não paro, não quero. Sento (vou na onda, é verdade). Tem que dançar, dançando e, dançando, gravar, gravando: é “A Tábua de Esmeralda”.
Jorge Ben - agora com o Jor, por favor - se tornou uma das mais completas traduções da brasilidade. É considerado artesão máximo do samba. Fabrica-o com a exuberância deliciosa de quem agita-se pelo balanço funkeado de James Brown e saracoteia-se pelo dilúvio soul da voz cantada por Otis Redding. Às vezes, pode adicionar aí o tempero da nota blue. E, com isso, cria canções idênticas ao Brasil: miscigenadas pelas culturas indígena, europeia e afro.
São invenções estéticas que marcam nossas vidas. A vida de Jorge, assunto pra lá de misterioso, virou livro. Nos últimos anos, muita gente se perguntou quantos anos efetivamente o compositor carioca tinha. Segundo a jornalista Kamille Viola, autora da biografia “África Brasil: Um Dia Jorge Ben Voou Para Toda a Gente Ver”, ele nasceu em 1939 - e isso só foi possível porque Kamille, repórter obstinada, encontrara em arquivos públicos um documento datado daquele ano, no qual batiam a data de nascimento e o nome do pai, mas não o da mãe.
Início e auge
Filho de mãe descendente de etíopes e pai branco, Jorge Ben não teve lar estraçalhado, como Erasmo Carlos. Nem passou pelas mesmas dificuldades financeiras que Roberto Carlos. Também nunca exibiu nenhum comportamento intempestivo, característica de Tim Maia, conhecido pelo ímpeto esquentado que, por vezes, lhe tomava a razão. Dos amigos da Tijuca, bairro onde surgira aquela célebre turma nos anos 1950, foi o primeiro a ter um disco do guitarrista Chuck Berry e a usar uma calça jeans, privilégio para poucos na época.
Jorge Ben aprendeu a tocar pandeiro cedo, aos 13 anos, após o pai lhe presentear com o instrumento. Mais tarde, quando estava com 18, a mãe - violonista amadora - lhe deu um violão. Apaixonou-se pelo estilo de João Gilberto, que lançara em 1958 o clássico “Chega de Saudade”, obra obrigatória em qualquer discoteca básica de música brasileira. Mas também gostava dos rocks tocados por Chuck e, em 1961, já se apresentava no lendário Beco das Garrafas, casa noturna reduto da bossa nova e do samba-jazz, em Copacabana, no Rio.
Pode-se ouvir essas influências no elepê “Samba Esquema Novo”, de 63. Há mistura de bossa nova, samba tradicional e jazz, uma fusão que só não se tornou movimento de cara porque Tom Jobim dava as cartas. Além de tudo, não bastasse o reinado daquela “Garota de Ipanema”, o tal “movimento” tinha o endosso de um homem apenas. No entanto, nesse disco, já se percebe as divisões rítmicas pouco comuns à época e o uso de falsetes, sem falar na sonoridade inconfundível extraída do violão - estilo que enlouqueceu todo mundo.
O violonista Kleuber Garcêz, da banda goiana Mundhumano, sublinha ao Dário da Manhã que a relevância jorgebeniana à música brasileira abrange o pop inteiro, “tipo Fernanda Abreu, Racionais MCs, Caetano Veloso e Gilberto Gil”. “Mais do que todos, Gil foi quem ficou enlouquecido quando ouviu Jorge Ben pela primeira vez”, explica. O tropicalista disse, em depoimento ao jornalista Claudio Leal, que quando ouvira “Samba Esquema Novo” pela primeira vez sentira que não havia mais necessidade de continuar como compositor.
Com mais de 200 versões, a faixa “Mais Que Nada”, que abre “Samba Esquema Novo” , recebeu interpretações dos jazzistas Al Jarreau, Dizzy Gillespie e Ella Fitzgerald. Foi relida ainda por Elza Soares, rainha do sambalanço, gênero popular entre os anos 50 e 60. O porto-riquenho José Feliciano também a regravou, bem como os sul-africanos Miriam Makeba e Hugh Masekela. Mas quem é fã do brasileiro mesmo é o norte-americano Beck, que no disco “Mutations”, de 1998, consumou suas declarações de amor a Jorge Ben.
Kleuber, que prefere chamar o lendário carioca apenas de Jorge Ben, sem o Jor, explica o que tem de especial esse samba esquema novo: “é o samba-rock, o soul, a malandragem carioca, a gíria. Foi o primeiro a colocar uma letra mais coloquial. Sobre letra, até abriria uma aspas aqui, pois ele consegue musicar qualquer texto - sem métrica, sem rima, e dá tudo certo. Como diz João Gilberto, é um gênio da raça. Nos anos 70, 80 e 90, principalmente nos anos 90, com a redescoberta de Skank e a galera de ´Pernambuco, ele continua fazendo barulho”.
Da tropicália à tábua
Ao lado do Trio Mocotó, lançou três discos basilares: “Jorge Ben”, de 69, “Forta Bruta”, 70, “Negro é Lindo”, 71. O primeiro deles é considerado a obra tropicalista da discografia jorgebeniana, com algumas faixas sendo arranjadas pelo maestro Rogério Duprat. Em 74, após abrir as portas da percepção, conceituou uma obra centrada em torno da alquimia, assunto do qual era estudioso desde pequeno - Jorge Ben sempre fora leitor voraz, de Santo Agostinho a Dostoievski, cujo autor evoca na letra de “As Rosas Eram Todas Amarelas”.
Em “Pavões Misteriosos”, livro que relata os bastidores da música brasileira nos anos 70, o jornalista André Barcinski diz que, se um brasileiro ou qualquer pessoa de fora entrasse numa loja de discos em 74, tomaria um susto: Tim Maia misturava cultura racional com disco voador, Secos e Molhados trazida toda aquela expressividade sexual que encantava crianças e musicava poemas inteiros de brasileiros e portugueses e Raul Seixas mergulhava na sociedade alternativa, no ocultismo e na contracultura com “Gita”. E, lógico, havia Jorge Ben falando sobre alquimia e figuras medievais, porém demonstrando enorme tino para o pop.
“Acho difícil hoje um artista pop ter um álbum com tantos clássicos incendiários à primeira audição, como ‘A Tábua de Esmeralda’. Você pode enumerar: ‘Os Alquimistas Estão Chegando os Alquimistas’, ‘O Homem da Gravata Florida’, ‘Magnólia’, ‘Zumbi’, ‘O Namorado da Viúva’, ‘Menina Mulher da Pele Preta’. É muito impressionante a quantidade de músicas fodas que o Jorge Ben tinha em mãos usando como pano de fundo a alquimia”, analisa Kleuber Garcêz, cuja banda da qual faz parte, Mundhumano, carrega fortes influências do violão inebriante tocado magistralmente por Jorge Ben em seus discos.
Dentro da contracultura, “A Tábua de Esmeralda” talvez seja a obra musical mais ousada. Kleuber lembra que, se não fosse o empresário André Midani apostar nessa maluquice protagonizada por Nicolas Flamel e Paracelso, é certo que não conheceríamos a obra hoje em dia. E muito dificilmente passaria num crivo de gravadora. Mas aqueles eram os anos 70, onde se podia tudo, época em que o Led Zeppelin, por exemplo, rodava o planeta disseminando a mensagem do mago Aleister Crowley. “Tinham diretores mais apaixonados por música do que por dinheiro”, afirma o músico goiano, referindo-se a Midani.
Jorge Ben trocou violão pela guitarra elétrica nos anos 70
Nos anos 70, Jorge Ben difundiu o samba-rock e trouxe para a MPB o funk. Foi nessa década também que ele trocou o violão e suas afinações diferentes pela guitarra elétrica. Mas antes, com Gilberto Gil, fizera ainda o álbum “Gil & Jorge: Ogum, Xangô”, de 75, obra-prima na qual dois dos maiores violonistas do período - Gil e Jorge - improvisam. A síntese sonora da fase eletrificada se encontra em “África Brasil”, lançado em 76, cuja primeira faixa nos dá boas-vindas: “Ponta de Lança Africano” é um dos maiores riffs já criados na nossa música.
Jorge retornou ao violão no “Acústico MTV” , lançado no novo milênio, em 2002. Ele toca clássicos da carreira, como “Jorge da Capadócia”, “Take It Easy My Brother Charles” e “Fio Maravilha”, num exuberante violão de 12 cordas. Em 2016, o artista colocou quase 7 mil pessoas no Centro Cultural Oscar Niemeyer para assisti-lo num sábado, durante o festival Bananada. Três anos depois, esteve no projeto Flamboyant In Concert. Hoje em dia, separado de Domingas Terezinha, com quem era casado por 50 anos, mora no Copacabana Palace. Flamenguista fervoroso, ninguém retratou a brasilidade tão bem quanto ele.