
Assim que se abrem as cortinas, um cenário detalhista se reproduz diante dos nossos olhos. Sigmund Freud, o pai da psicanálise, está em seu gabinete. Ateu, ele recebe o escritor C.S Lewis, há pouco convertido ao cristianismo, para um debate que coloca “Deus em questão” .
Somos levados a 1939. Parece que retornamos às formas pretéritas do teatro dramático. Todavia, não devemos compreender o espetáculo por esse viés. “A Última Sessão de Freud”, em cartaz no Teatro Goiânia neste fim de semana, é sobretudo um confronto de ideias.
Para Freud, as ações humanas nascem no inconsciente. A consciência, na visão do psicanalista, seria a ponta de iceberg, ao passo que a faceta submersa se constituiria por pulsões sexuais, impulsos agressivos e sentimentos relegados pela nossa cultura. Os desejos reprimidos se manifestariam nos sonhos, nem sempre entendíveis ou identificáveis.
O ator Odilon Wagner, que vive Freud na peça, revela ao DM que a filha do psicanalista sugeria leitura das correspondências do pai como meio para decifrá-lo. “Ele era ateu, mas se correspondia e dialogava com religiosos de diversas correntes, estudava os livros sagrados para justamente poder dialogar com mais propriedade e respeitava as opiniões diferentes.”

A psicanálise, na medida em que estudara a psique humana, sistematizou durante o século 20 reflexões que possibilitaram à humanidade entender melhor a si mesma tendo como eixo um conceito-chave, o inconsciente. Ou seja, para Freud, sua teoria se dedica a investigar “os processos mentais que de outra forma seriam inacessíveis ao conhecimento humano”.
Lewis, por sua vez, se sabia cristão. Embora seja conhecido do público brasileiro pelo romance “As Crônicas de Nárnia”, o autor foi um profícuo ensaísta. Nesses textos, nos quais exibia prosa azeitada e cristã, adotava postura reflexiva e filosófica. Possuía, no entanto, outros dois eixos temáticos: crítica literária e produção teórica, criação de textos literários.
Intérprete de Lewis em “A Última Sessão de Freud”, o ator Marcello Airoldi define o pensamento desenvolvido pelo autor célebre como “fundamental”. “C.S Lewis apresenta uma visão do cristianismo que não é maniqueísta, pois amplia os pontos de vista”, analisa o artista, que ingressou na peça em 2024 — pelo menos 130 mil pessoas já assistiram-na.
Filho de pai advogado e mãe professora de matemática, o escritor irlandês cresceu em um lar protestante. Na adolescência, como que se opondo a esse arranjo familiar um tanto conservador, questionava dogmas religiosos e, assim, assumiu-se ateu. Sua literatura, nos primeiros livros, revelava certa predileção por mitologia, ocultismo e cultura nórdica.

“A Última Sessão de Freud” põe em confronto as ideias de Freud e Lewis. Sob direção do dramaturgo Elias Andreato, a peça se baseia no livro “Freud´s Last Session”, publicado pelo autor Mark St. Germain., em 2010. O pai da psicanálise, como se sabe, é vivido por Odilon Wagner, enquanto o crítico ressurge nos palcos a partir do já mencionado Marcello Airoldi.
Ao falar com o DM, em certa altura, Wagner coloca Freud dentre “grandes gênios do século 20”. O ator lembra que, além de toda sua obra psicanalítica, o intelectual austríaco escrevia sobre temas de interesse humanitário. “Foi indicado 12 vezes ao prêmio Nobel, inclusive de literatura. Foi um homem que viveu com uma intensidade impressionante”, salienta.
“Esse mergulho profundo a que se dedicava em tudo que fazia, é uma das coisas que mais aprendi a admirar em Sigmund Freud”, externa o artista, dizendo ser incomum na carreira cênica interpretar personagem “tão potente” quanto Freud. “Precisei mergulhar em sua história, em suas ideias, em seus valores, para poder representá-lo sem caricatura.”
“Precisei mergulhar em sua história, em suas ideias, em seus valores, para poder representá-lo sem caricatura.” Odilon Wagner, ator
Embate de ideias
Durante o diálogo imaginado entre os intelectuais, Freud, crítico da crença religiosa, e C.S. Lewis, renomado professor de Oxford, crítico literário, ex-ateu e adepto da fé racionalista, debatem o dilema entre ateísmo e crença em Deus. O embate ficcional dos dois pensadores se estende ainda para assuntos como sentido da vida, sexo e relações humanas.
Nessa perspectiva, Airoldi classifica a criação literária de Lewis como “muito aguçada”. “Ele vasculha os campos da intuição do leitor, do raciocínio do leitor, da filosofia. Então, é um autor muito amplo, muito rico nesse sentido, acho que por isso ele é fundamental”, afirma.
Em tempos de intolerância — como esses que vivemos —, “A Última Sessão de Freud” instiga o público a comparar períodos históricos. Freud, morto em 1939, estava exilado na Inglaterra após ter fugido da perseguição nazista, em meio à eclosão da Segunda Guerra Mundial na Europa. Pelo bem da ação dramática, diz Andreato, uma escolha foi tomada.
Conforme o diretor, o espetáculo efetivamente mostra um embate de ideias. Para evitar cair nessa armadilha, no entanto, situou o encontro entre Freud e Lewis no dia em que Inglaterra entrara no conflito mundial. “Então, são dois homens no limite, sabendo que Hitler poderia bombardear Londres a qualquer minuto”, disse Andreato numa entrevista.