Escuto mais uma vez o pianista sul-africano Abdullah Ibrahim, 89. Me impressiono pela invenção constante de sua música, pelos caminhos labirínticos percorridos nela, pelo silêncio entre acordes. Jazz é mistério. Ou estímulo. Esse aqui – que ouço agora – resiste à perversidade do apartheid. Assobio o tema. Meus pés começam a se mexer.
Sei lá, eu deveria ouvir isso daqui de joelhos. E, no entanto, não ouço. Simplesmente inquiro. O jazz, conforme leio num livro do jornalista Arthur Dapieve, se dedica a fazer política. Basta olhar para a evolução desse gênero afro-americano: sua existência já é por si só um ato rebelde. De uma forma transgressora, me avisa que não aceita intolerância. Detesta governos racistas cancelando passaportes. Não tolera idiossincrasias idiotas.
Abdullah Ibrahim me reconectou com Duke Ellington e Thelonious Monk. Explico o porquê: Ibrahim nasceu na Cidade do Cabo, da qual se mudara (eufemismo para exílio) em 62, no auge do governo racista sul-africano. Foi para a Europa e, sob as bênçãos de Ellington, chegou aos EUA. Na época, o pianista atendia pelo nome Adolph Johannes Brand. Ou Dollar Brand, como artisticamente se chamava naquele tempo.
Após apreciá-lo num palco suíço, o lendário Africana Club, em Zurique, Ellington achou que não havia nada no mundo tão bom quanto aquilo. E ajudou-o a gravar o disco “Duke Ellington Presents the Dollar Brand Trio”, que projetou o pianista no cenário jazzístico internacional, em 64. Desde então, tornou-se familiar para o público estadunidense e, de quebra, descortinou para nós tradição ainda pouco falada: o jazz africano.
Ibrahim se converteu ao islã nos anos 60. Mesmo que já tivesse na época feito bons discos (alguns imprescindíveis), muito se diz que o gênio do pianista ainda não havia nesse momento se manifestado, não totalmente. Tal sina só foi mudar na década de 70 – período em que regressou à África do Sul – e se deixou seduzir pelo folclore do país natal – cuja população negra, inclusive, era submetida a um infame regime segregatício.
Noutras palavras, o racismo era lei por lá. Vejamos o que houve com o maior símbolo de resistência ao apartheid: Nelson Mandela passou 27 anos preso. Você consegue perceber melhor a diferença entre o racismo amparado na legislação (horroroso) daquele que se manifesta à brasileira? O nosso é mais “brando” perto da África do Sul, porém racismo – e, em razão disso, crime difícil de ser extirpado da sociedade.
Ele sorri com frequência (...) provavelmente manterá suas interações com o público ao mínimo, concentrando-se intensamente nas tonalidades, vasculhando um vasto repertório de composições originais Abdullah Ibrahim, pianista
Apaixonado por sua gente, Ibrahim se voltou às melodias da pátria mãe segregada e do continente roubado por séculos de colonialismo. Interessou-se, então, pelas peças líricas. Aliás, peças cantaroláveis. Talvez por causa desse detalhe, ao que penso aqui comigo, o jazzista tenha gostado de se acompanhar usando a própria voz. Seria como se Dizzy Gillespie olhasse para a latinidade, o que o trompetista norte-americano fez – diga-se.
Já instalado na Cidade do Cabo, para a qual regressara em 73, encontrou na música e nas artes marciais os instrumentos que lhe fizessem alcançar uma disciplina espiritual. E, com esmero, trabalhou em favor da música: fundou uma escola. As excursões mundo afora continuaram – seja acompanhado por grandes ou pequenos grupos. Até que, no ano seguinte, compôs o belíssimo hino oficial para os (destemidos) sul-africanos negros.
Mar de estilos
Corda, saxofone (Ibrahim também toca) e percussão avisam que é na África do Sul “onde está acontecendo” boa música. Afinal, conforme declarou o pianista ao jornal irlandês “Irish Times”, em 2016, foi preciso entender “desde cedo que a luta era por nossa própria humanidade”. Daí sua arte se basear numa grande improvisação e numa grande meditação em movimento – como se estivesse flutuando sobre um mar de estilos.
Inclusive, um ponto interessante na discografia do pianista é “The Song Is My Story” (2015), a partir do qual compreendemos a forma com que a musicalidade de Ibrahim evoluiu ao longo das décadas. Ele trata melodias líricas de ascendência africana utilizando uma sofisticação harmônica jazzística. E como falamos aqui de jazz, a razão de ser do músico desde os tempos do grupo Jazz Epistles, esse recurso é essencial.
Tão essencial que jamais lhe impediu de sonhar e de resistir – sempre ao piano. Assim como sua música, Ibrahim é calmo. “Ele sorri com frequência (...) provavelmente manterá suas interações com o público ao mínimo, concentrando-se intensamente nas tonalidades, vasculhando um vasto repertório de composições originais, buscando a perfeição”, observa o jornalista Giovanni Russonello, do jornal “New York Times”.
Tudo isso me vem à cabeça enquanto começo a ouvir o novo (e duplo) disco do mestre Abdullah Ibrahim, “3”, já disponível nas plataformas de streaming. E me ocorre o seguinte: racistas odeiam a música. Gostam, isto sim, de perseguir. Foi o que Ibrahim sentiu quando tocou com o trompetista Hugh Masekela (lendário instrumentista sul-africano) no Jazz Epistles. Perseguido pela polícia, o único disco lançado pelo grupo acabou banido pelo governo. Apenas umas poucas cópias do LP foram prensadas.
Assim, os clássicos de Ibrahim, tais como “Duke Ellington Presents the Dollar Brand Trio”, “Ekaya”, “Water From an Ancient Well” e, recentemente, “3”, nos proporcionam uma sinfonia de sax alto, sax tenor, sax barítono. Aos 89 anos, Abdullah Ibrahim tem lançado excelentes álbuns, álbuns que mostram à posteridade como a música pode ser um instrumento revolucionário, com luzes acesas, reflexões humanistas, sociedade progressista – e a gente assobia andando na rua um potente jazz. O jazz salva.
3
Autor: Abdullah Ibrahim
Gênero: Jazz
Disponível no Spotify