Isso aqui é frevo de rua, maracatu e ciranda! Sim, o cantor Alceu Valença, 77, lança a trilha sonora efetiva da folia no disco “Bicho Maluco Beleza - É Carnaval”, já disponível nas plataformas de streaming. Ele divide o microfone com nomes superlativos da música brasileira, como Ivete Sangalo e Lenine, Maria Bethânia e Lia de Itamaracá, Elba Ramalho e Geraldo Azevedo. Não se pode esquecer, óbvio, dos jovens talentos Juba e Almerio.
Sibilando folia, “Bicho Maluco Beleza” começa alto astral com a música-título, lançada no disco “Sete Desejos”, de 1991. Foi consagrada em versão frevo pelas multidões foliãs espalhadas Brasil afora, numa verdadeira demonstração da relevância valenciana a essa festa popular que resume o espírito de nossa gente. O artista faz dueto com Ivete, estrela-mor da Bahia. Juntos, celebram blocos que sacodem as ruas fibrilantes de Olinda a Goiânia.
Tudo se encerra numa levada blueseada, estilo com o qual Alceu é identificado, aliás. A jornalista francesa Dominique Dreyfus, especialista em música brasileira, lembra quando o conheceu. Uns brasileiros lhe chamaram para assistir ao show que ela compreendeu ser da violonista Rosinha de Valença, no Théâtre Campagne-Première, em Paris. Entretanto, assim que colocou os pés no local, percebeu dois cangaceiros cabeludos mandando ver no violão música de sotaque bluesy - o que, segundo Dreyfus, era algo inédito na França nos anos 70.
Ao sentir os acordes, maravilhar-se com as pontes entre eles e deslumbrar-se com o ritmo, Dreyfus foi transportada pela memória ao Nordeste da infância. Findado o show, farejou ali uma reportagem e levou dois dedos de prosa com Alceu e Paulinho Rafael. “Escrevi uma matéria que enviei ao jornal ‘Libération’, a primeira de tantas que escreveria a partir daí. Vai ver que devo minha carreira de jornalista a Alceu”, recorda-se, na apresentação da biografia “Alceu Valença - Pelas Ruas que Andei”, livro publicado em 2023 pelo jornalista Julio Moura.
O blues leva “Bicho Maluco Beleza” à explosão do frevo: “Pra começar/ Eu vou te amar o ano inteiro/ De janeiro a janeiro/ Meu amor, sem atropelo”. Com imponentes arranjos de metais, os versos de “De Janeiro a Janeiro” são vocalizados na companhia da diva Maria Bethânia. Diz texto disponibilizado à imprensa pela gravadora Deck Disc que a abelha rainha habitara o universo da festa recifense no início da carreira, nos anos 1970. Pode-se dizer que esse dueto é histórico, pois ali temos duas vozes, dois mundos e dois gênios.
Coeso, enérgico e carnavalesco, a terceira música inflama o “Diabo Loiro”, num tête-à-tête de Alceu com o filho Juba. Essa é a primeira das duas canções escritas pelo octogenário compositor pernambucano José Michiles da Silva. A outra é “Bom Demais”, que também é a seguinte no repertório: temos a presença de Lenine, violonista inserido na tradição rítmica brasileira - antes dele, nesse costume, houve os lendários Baden Powell, Jorge Ben Jor e Gilberto Gil. Convém destacar na música a marcação percussiva do tempo: bom demais, bom demais!
Ponta do pé
Após a mesura na ponta do pé, os dois artistas abrem passagem para o percurso musical da rua, em malabarismos rítmicos e divisões de tempo interessantes. Se Alceu e Lenine são soberanos na acentuação carnavalesca da canção, o pernambucano e Elba Ramalho surgem na paisagem musical do disco entre síncopes propícias para a folia. “Caia por Cima de Mim” espanta a tristeza: “Você sabe que eu te amo/ Por favor não demore”. Mais à frente, o eu-lírico valenciano - aqui bem acompanhado de Elba - afirma que é para cair por cima dele.
No balanço do frevo, Alceu recebe Almerino. Ambos capricham no sorriso de manequim e fazem ferver a chaleira de “O Homem da Meia-Noite”, parceria entre Alceu Valença e Carlos Fernando. Com a faixa, presta-se formidável homenagem a um dos blocos mais icônicos do carnaval brasileiro. É um delírio total. Um delírio que só quem já olhou no celular à meia-noite - com lua cheia nos quatro cantos pra ver quem vai passar descendo a ladeira, conforme nos diz a letra - irá entender: “O homem da meia-noite delírio do carnaval”.
Dentre batidas no bombo, estouro de bombas e alegria desvairada, os batuques de ingonos dão o tom à festança. Com licença, amigos, agora é “Maracatu” - canção do disco “Cavalo de Pau”, de 1982. Os versos esculpidos pelo poeta Ascenso Ferreira marinam na sonoridade nordestina de Valença, nos quais se evocam traços da ancestralidade afro-brasileira. “Luanda, Luanda, onde estou?/ Luanda, Luanda, aonde estás?”, tateia o cantor, escoltado pela guitarra virtuosa de Zi Ferreira, comprometido em preservar o legado de Paulo Rafael.
Mestre nas seis cordas elétricas, Paulo eletrificou nos anos 70 (fase psicodélica) a música de Alceu. Seus fraseados, os comentários realizados nos solos e os acordes vibrantes aproximaram a música nordestina do rock, mas sem cair naquele discurso de que o estilo americano veio ao Brasil para colonizar nossa música: é o frevo que se apodera do rock, não o contrário. Ser mais brasileiro que isso, penso eu, é difícil. A cultura nordestina não se perde jamais.
Alceu contempla ainda o balanço das águas marítimas em “Quem me Deu Foi Lia/ Moça Namoradeira/ Janaína”. Depois, ataca num número solo, “Luar de Prata”, que possui um entusiasmante solo de saxofone construído por Heleno Feitosa. E, por fim, levanta voo - ao lado do amigo Geraldo Azevedo - em uma versão frevo do hit “Taxi Lunar”, em que os aditivos da folia se misturam àquela cabeleira vermelha, sabe como é? “Bicho Maluco Beleza” é um disco pra ser ouvido no balancê da festa popular até Quarta-Feira de Cinzas.
Bicho Maluco Beleza
Faixas: 10
Gravadora: Deck
Gênero: Frevo
Artista: Alceu Valença
Disponível no Spotify