
Após duas datas em Goiás na última semana, a cantora Ana Cañas lançou à meia-noite desta sexta-feira, 15, o single “Derreti”. Trata-se de dueto sensual com Ney Matogrosso, esse camaleão de voz alva, sex appeal faiscante e performance incendiária diante do microfone.
Não há como passar incólume aos dois. A latinidade, meio Rita Lee em “Mania de Você”, chega aos ouvidos tão logo ressoa o primeiro acorde. Cañas solta um murmúrio prazeroso: “Caminhando na rua/ Aquele sentimento/ Que ali nunca deixou de existir.” Ney repousa seu nariz no ombro à mostra da cantora paulistana: “O corpo acendeu/ Os olhos brilharam.”
Cañas classifica a música como um encontro sexual vivido em alta temperatura erótica. Por isso, ela afirma, rola um reajuste na metafísica da existência. Duas pessoas se entregam ao prazer, sexualmente reenergizadas, e em seguida se veem lidando com o reencontro.
“Afinal, existimos sem a troca? Existimos sem o outro? O corpo clama?”, pergunta-se Cañas, falando que “Derreti” versa sobre uma incongruência moderna, o desejo de pertencer versus o medo de depender. “Isso é algo que eu conheço bem, sou Virgem com Escorpião.”
Tudo se encaixa perfeitamente na música, como dois corpos apaixonados e abraçados subindo as escadarias do desejo. A percussão de Migga Freitas entrelaça ao mesmo tempo ternura e desejo, enquanto o eu lírico se confessa derretido, totalmente caidinho, e implora por mais uma noite pro dia nascer feliz: “Eu nem sei seu nome/ Mas vou te beijar.”
Além do compasso batucado por Freitas, “Derreti” traz Vini Nallon no violão, João Moreira no baixo, o já mencionado Migga Freitas e Marcus Cesar na percussão, bem como o ex-Skank Henrique Portugal no piano Rhodes. Dudu Marote e Ubiratan Marques também tocam o instrumento. Isto é, músicos habilidosos elevam o erotismo apresentado na letra.
Ney, amigo, Ney é um caso sério. Andrógino em meio à ditadura e sua caretice assaz, ele irrompeu na música brasileira urdindo e jurando mentiras no Secos e Molhados. Assumia seus pecados, aparecia na televisão maquiado, desatinado. Dono de si. O prazer de ser você mesmo, de provocar a classe média, de coreografar a liberdade na geografia do corpo.

Isso lá em 1973, pense. Hoje, aos 83 anos, permanece símbolo máximo da jovialidade, numa vitalidade surpreendente. Comparável apenas a Mick Jagger, pois, provocante e sedutor, faz o público desejá-lo por horas. E, no entanto, dispensa vulgaridades. Artista refinado, sutil.
Segundo Ney, “Derreti” tem uma atmosfera divertida. “Se trata de um sexo casual, parece que os personagens gostaram muito e querem repetir”, afirma o cantor, que volta a repetir dueto com Cañas. Eles se reuniram na faixa “O Amor Vem Antes de Tudo”, lançada neste ano no disco “Canções Para Um Novo Mundo”, do duo Hecto e do ex-Secos e Molhados.
A pupila se derrete pelo ídolo, ao declarar que a latência, a sensualidade e o sexo em contraponto à solitude são elementos que indicavam Ney no estúdio. “Foi uma honra muito grande tê-lo na faixa e vê-lo interpretar uma canção que escrevi foi uma das maiores emoções da minha vida”, vibra Cañas, dizendo-se admiradora e amiga do cantor lendário.
Empoderada
Nos anos 2000, a cantora fez fama na noite paulistana com sua voz enfumaçada. Quando a multinacional Sony Music foi vê-la no bar Baretto, a artista disse aos olheiros da companhia que gravaria suas próprias músicas e, assim, produziu um álbum de estreia quase todo autoral, cujo nome é “Amor e Caos”, publicado em 2007. Foi a maior revelação daquele ano.
Até aqui, lançou seis discos de estúdio — o próximo, “Vida Real”, sairá em breve. O ponto culminante nessa trajetória fonográfica é o empoderado “Todxs”, de 2018. A essência da obra se revela na capa: uma cobra entre pernas femininas prestes a dar o bote. Ilustra o clitóris, órgão voltado ao prazer mas ignorado por machões que nem sabem onde localizá-lo.
Quase todas as faixas de “Todxs” foram compostas por Cañas. Arnaldo Antunes assina duas canções em parceria com a cantora. Impressiona a releitura de “Eu Amo Você”, do soulman Cassiano e Sílvio Rochael. Essa faceta intérprete, aliás, se moldou na labuta noturna, quando cantava Ella Fitzgerald e Billie Holiday para atenuar as lamúrias da barriga esfomeada.
A música foi o meio encontrado para sobreviver. Aos 18 anos, Cañas entendeu que a incompatibilidade com a mãe não se resolveria. Restou-lhe uma saída: sair de casa. Morou em quartinho cheirando a rato e barata, mas seguia em frente fazendo bicos. Chico Buarque apareceu para assisti-la certa vez, pois se falava de uma ótima cantora na noite paulistana.
Aos 45 anos, Cañas se consolidou na música popular brasileira. Fez sucesso ao lançar os discos “Ana Cañas Canta Belchior”, em 2021, e “Ana Cañas Canta Belchior (Ao Vivo)”, que saiu em 2023. Parceira de Marina Lima, a paulistana trafega pelo atalho inaugurado pela autora de voz bluesy que cantara “Fullgás” nos anos 1980. Ana Cañas é o que temos.