Antonio Cicero, célebre poeta e letrista, recorreu à morte assistida nesta quarta-feira em Zurique, na Suíça, onde estava com o marido Marcelo Pies. Cicero tinha 79 anos. Diagnosticado com Alzheimer, tratava problemas neurológicos causados pela doença.
Em carta endereçada a amigos, confessou desejo de morte digna. “Como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo. Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade”, disse.
No texto, definiu sua condição nos últimos anos como “insuportável”. “Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia. Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo”, escreveu, acrescentando que, apesar de tudo isso, encontrava-se lúcido para reconhecer seu “terrível” estado.
Nascido no Rio de Janeiro em 6 de outubro de 1945, Cicero estudou filosofia na PUC. Em seguida, matriculou-se no Instituto de Ciências Sociais da UFRJ, mas a ditadura militar o obrigara a sair do Brasil, em 1969, meses após o AI-5. Concluíra a graduação na Universidade de Londres e, logo depois, fez mestrado na Georgetown University, nos EUA.
Cicero dominava grego e latim, o que lhe possibilitara ler em línguas originais escritos de Homero, Píndaro, Horácio e Ovídio. Quando retornara ao país natal, em meados dos anos 1970, iniciou-se na carreira de professor universitário lecionando filosofia e lógica.
“Na poesia, eu me deleito com o relativo e o particular. Na filosofia, busco a verdade absoluta e universal”, dizia o intelectual, homem da palavra, sujeito que levava fé no texto e acreditava nas ideias. Equilibrando-se entre pensamento filósofo e prática literária, cultivou escrita desde pequeno. Uma de suas investigações, inclusive, era entender o que é a arte.
Desde 1995, publicou quase dez livros. É dele as obras poéticas “Guardar”, “A Cidade e os Livros” e “Porventura”, bem como a ensaística “Finalidades Sem Fim”, indicada ao Jabuti. Conforme a Companhia das Letras, “O Eterno Agora”, título póstumo, sairá em 2025.
Irmã do filósofo, a cantora Marina Lima lembra quando musicou poesia de Cicero pela primeira vez. “Soneto tem ritmo todo musical, todo rimado. Quando eu li, falei: ‘nossa, aqui tem música’. Como eu estava querendo treinar mesmo, peguei o papel e musiquei o soneto dele”, rememora a artista, em depoimento pinçado de doc exibido pelo canal Arte 1.
Na poesia, eu me deleito com o relativo e o particular. Na filosofia, busco a verdade absoluta e universal” Antonio Cicero, poeta e filósofo
Marina mostrou a canção para o irmão. “Ele gostou e, a partir dali, nasceu intimidade. Éramos irmãos e viramos parceiros. Começamos a compor. Ele não tinha também profissão muito definida. Ia ser o que no Brasil, na ditadura, final dos anos 60? Ia ser filósofo? Ele não ia chegar nem na esquina, entendeu? Cicero virou compositor comigo, meu parceiro.”
Sem banda, a cantora se uniu ao irmão. Cicero, por sua vez, virou letrista à própria revelia. De cara, a censura ditatorial lhe amordaçou canção “Alma Caiada”, impedida de ser gravada no disco “Pássaro Proibido” (1976) pela voz inigualável de Maria Bethânia. “Mas, às vezes, pressinto/ Que eu não me enquadro na lei/ Minto sobre o que sinto”, expressava o poeta.
Nos anos seguintes, Cicero arquitetou mais versos para serem musicados a partir do violão moderno tocado por Marina, cuja voz recebia poesia com rouquidão sensual. Essa parceria resulta “Simples como Fogo” (1979), álbum em que a cantora e compositora apareceu tocando guitarra — algo incomum na época, pois quase não havia instrumentistas.
Em termos de popularidade, Cicero e Marina experimentaram auge no início dos anos 1980, com elepês “O lado Quente do Ser” (1980) e “Charme do Mundo” (1981). Explodiriam três anos depois ao publicarem “Fullgás”, todavia. Lançado após 20 anos de repressão fardada, em 1984, essa obra-prima retrata período importante da história brasileira recente.
Como que abrindo os braços e fazendo um país, a dupla tomou partido pelo “presente e nele pelo mais full gas e mais fugaz”. Ao abrir o disco, os ouvintes e as ouvintes encontravam folha avulsa, além do vinil. Um texto, diferente do material gráfico habitual, explicava pretensões de Cicero e Maria. Começava instigante: “Somos brasileiros e estrangeiros.”
Na sequência, falavam que a “força” do Brasil se originaria “da fusão de todas as águas, de todas as correntes culturais, da miscigenação”. Opunham-se aos defensores das raízes na música brasileira. “Se nossa música é política? Nossa música é a nossa política. Queremos descobrir novas possibilidades: não de fazer ‘arte’, mas de viver”, afirmavam os irmãos.
Além de “Fullgás”, a dupla repetiu parceria em outros trabalhos dos anos 1980, caso de “Pra começar” (1986) e “Virgem” (1987), ambos bem-sucedidos em matéria radiofônica. Cicero e Marina atravessaram os anos 1990 emplacando nas paradas “Acontecimentos” e “Deixa Estar”. Em 2018, para o disco “Novas Famílias”, compuseram o funk “Só os Coxinhas”.
Letrista progressista (abordava sexo por viés libertário) e imortal pela ABL, jamais se enxergou poeta menor por causa das canções populares. Foi parceiro de Adriana Calcanhotto (“Água Perrier”), Roberto Frejat (“Bagatelas”), João Bosco (em 12 músicas), Arthur Nogueira (Sem Medo Nem Esperança) e Lulu Santos (“O último romântico”).
Frejat, cantor, compositor e guitarrista, afirma que contribuição de Cicero para a música brasileira “é imensa em letras que estão espalhadas por vários parceiros e com sua irmã Marina Lima”. “A lembrança que fica é o talento, o bom humor e uma charmosa timidez. Meus sentimentos à Marina e ao seu companheiro de tantos anos, Marcelo Pies”, lamenta.
Como diz Antonio Cicero em um de seus poemas famosos, “guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado. Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela”. Você abriu nossos braços e nós fizemos um país, Cicero.