Eram dez e pouco da noite quando Guto Goffi sentou-se atrás da bateria. E olhou para Maurício Barros, que olhou Fernando Magalhães, que olhou Márcio Alencar, que olhou para Rodrigo Suricato e este puxou um clássico, “Ponto Fraco”. Mas não houve tempo nem de respirar e já veio o hino-dançante “Bete Balanço” emendado, como numa transa que garante o vai e vem dos quadris, no hit-etílico “Por Que a Gente é Assim”. Goiânia uivou!
O Barão voltou. Aliás, se você pensar bem, nunca parou. Continuou embalando jovens comprometidos em descaretar os sentidos. Há um prazer libertário em pedir mais uma dose, dizer que todo dia a insônia nos convence que o céu faz tudo ficar infinito e que somos belos bêbados cometas. Na voz de Cazuza e ao som de Guto, Maurício, Dé e Frejat, os roqueiros brasileiros deixavam de gritar “yeah” para proclamar “ééé”, em bom português mesmo.
Se Stones manejaram o idioma de William Shakespeare para torná-lo um instrumento de comunicação telegráfico, libidinoso e junkie, o Barão burilou a língua de Fernando Pessoa até fazê-la ganhar aspecto semelhante àquilo que fizeram Mick Jagger e Keith Richards. Com uma particularidade, porém: tudo isso, no caso dos cariocas, fazendo eco à poesia marginal. Primeiro, com Cazuza, fã de Jack Kerouac e Allen Ginsberg. Depois, vieram as colaborações de Chacal, Jorge Salomão e Mauro Santa Cecília - três poetas de texto certeiro.
A necessidade lírica da banda era saciada também pelos versos de Guto Goffi. Ele é autor de músicas como “Odeio-Te Meu Amor”, “Carne Crua”, “Meus Bons Amigos”, “Daqui Por Diante”, “Seremos Macacos de Novo”, “O Inferno é Aqui”, “Quando Você Não Está por Perto”, dentre outras. E já lançou quatro discos solo: “Alimentar” (2011), “Bem” (2016), “C.A.O.S” (2020) e agora “Respirar”, um frescor poético. Foi gravado entre 2020 e 2021, ou seja, durante os anos de pandemia. Guto se viu obrigado a dar soluções caseiras às músicas.
Nas faixas, o baterista usou e abusou de instrumentos virtuais, tocando teclados, metais, cordas, programando ritmos e percussão. Como prefere trabalhar em banda, se viu imerso num desafio, ao qual conseguiu driblar e, cara a cara com o goleiro, correu para o abraço. Essa forma de fazer música serviu para tornar os custos da empreitada sonora mais baratos. “O rock entrou em minha como uma forma de rebeldia, eu já era fã e consumidor desse gênero musical, e aproveitei a testosterona adolescente pra ir em frente nessa pegada.”
Texto
Guto Goffi valoriza o texto nas composições. “Eu fui aluno do Cazuza e do Zeca, sem eles nunca terem sabido disso. Aprendi com eles a enxergar mais longe, ser rápido no raciocínio e a acreditar na força da poesia”, conta o artista, em entrevista ao DM. O baterista, inclusive, se prepara para tocar no festival The Town com o Barão no próximo sábado, 9, no palco The One. Guto estava no Rock in Rio de 85, cujo show sua banda tatuou como um dos melhores já vistos no evento de Roberto Medina, o cara por trás do gigantesco evento paulistano.
Qualquer pessoa nascida dos anos 60 pra cá entende que é absolutamente notório que Barão tem um dos melhores shows. Toca rock ´n roll cristalino. Já passaram pelo furacão Cazuza, batalharam no comando do rocker brasileiro Roberto Frejat e agora encontram sintonia interessante na presença de Rodrigo Suricato. Ele não é Frejat, e nem precisa: respeita o compositor que ajudou a pôr em pé o repertório do grupo - aqui, com toda a justiça, é preciso lembrar também a relevância de Guto Goffi, letrista ótimo e baterista elegante.
“Fico sempre querendo imprimir o melhor pro nosso público. Quero que os mais céticos, com a nova formação, nos assistam e entendam porque o Barão voltou”, revela o artista, que deve lançar neste ano um disco com Os Britos (banda que homenageia os Beatles, formada por ele, George Israel, Nani Dias e Rodrigo Santos) e outro de tambores brasileiros, gravados com Robertinho Silva e Laudir Oliveira, há uns oito anos. “Quanto à minha maneira de cantar, eu fui descobrindo com o tempo que a minha voz tem um tamanho e peso legais na oitava mais grave. Sou um barítono/baixo, e é aí que devo jogar.”
Em “Respirar”, aparecem versos já conhecidos dos fãs do Barão, como “hoje eu acordei com sono, sem vontade de acordar, o meu amor foi embora e só deixou pra mim…”. Esses são da música “Bilhetinho Azul”, clássica parceria entre Frejat e Cazuza, gravada no primeiro elepê da banda, lançado em 1981. No frevo “Duas Estrelas”, composição assinada por Rodrigo Pinto, Luís Brasil e Guto Goffi, há um clamor pela vida ser vivida da melhor maneira, “subindo e descendo ladeiras, levando e baixando poeira”. Certeiro e bonito.
Um dos mais belos momentos do repertório fica por conta de “Fôlego”, homenagem ao poeta Mauro Santa Cecília. “Todo mundo de alguma forma respira, todo mundo de alguma forma inspira”, canta Guto, numa das passagens mais emocionantes do álbum. Nos últimos anos, Mauro foi paciente oncológico. Escreveu a letra do hit “Por Você”, do disco “Puro Êxtase” (1998), presença obrigatória em qualquer show do Barão. Outro momento de inspiração fica a cargo da esperta “Quem Alimenta Quem”, de Guto e Arnaldo Brandão: “o que eu quero alimenta a busca, a busca alimenta o império, o império alimenta o sábio”.
Tudo começou quando Guto Goffi finalizou “C.A.O.S”, lançado no início da pandemia. Só que havia um problema: a covid-19 lhe impediu de fazer shows. Então, restou-lhe só uma opção: gravar. Trata-se de álbum diferente dentro da discografia solo construída pelo barão. Não há, por exemplo, presença do Bando do Bem tocando o tempo inteiro. O grupo acompanha o artista desde 2016. Mas muita gente boa participa do projeto, como Armandinho Macedo, Bruno Mendes, Daúde, Nani Dias e Cláudio Gurgel, artistas de primeira categoria.
“Respirar” termina com “Stille Nnacht”, faixa composta pelo austríaco Franz Xaver Gruber. Dos anos em que conviveu com Cazuza e Ezequiel Neves (com quem dividiu a coautoria da obra “Por Que a Gente é Assim”, biografia do Barão Vermelho), Guto se lembra com afeto: “Que tempo bom! Aprendi com eles o respeito à homossexualidade e assistir de perto duas mentes brilhantes. Ficou pra mim a semente poética, os orgasmos das ilusões e os sonhos impossíveis, que acontecem.”
Veja o faixa a faixa de ‘Respirar’
Quem Alimenta Quem
Guto Goffi e Arnaldo Brandão
Fôlego
Guto Goffi e Mauro Santa Cecília
Bilhetinho Azul
Cazuza e Frejat
Lista de Compras
Guto Goffi
Amor Total
Guto Goffi
Corações Solitários
Guto Goffi e Claudio Gurgel
Duas Estrelas Caindo
Guto Goffi, Rodrigo Pinto e Luis Brasil
Custe o Que Houver
Guto Goffi e Dillo Daraujo
Stille Nacht
Franz Xaver Gruber e Joseph Mohr
Disponível nas plataformas de streaming