Artes vivem maior pujança em Goiás desde os anos 1980
Marcus Vinícius Beck
Publicado em 3 de junho de 2023 às 00:33 | Atualizado há 2 anos
As curvas modernistas assinadas pelo arquiteto David Libeskind emolduram a paisagem goianiense na Rua 84, Setor Sul. Planos verticais e horizontais, espaço fluído e diluído, aberturas generosas e charmosas. É nessa casa construída em 1955, que se transformou em marco estético de Goiânia e já abrigou a sede do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) que mora a Cerrado Galeria. Beleza a céu aberto, aos olhos de todos, arte para arte.
Para se instalar na casa, a Cerrado começou força-tarefa para preservar o patrimônio, conservar as características históricas do espaço, recuperar o jardim, mantê-lo intacto e encontrar uma forma de dar destaque aos azulejos desenhados por Libeskind. “São a essência de sua adaptação para receber um ponto fixo de arte na Capital”, diz a Cerrado, num post publicado nas redes sociais, em abril – poucos dias antes de sua inauguração.
De lá para cá, o espaço recebeu galeristas, colecionadores, jornalistas e artistas. E admiradores, é claro. Também, pudera: está montada a exposição “Pensamento Insubordinado”, retrospectiva de Siron Franco, um dos nomes centrais da arte brasileira desde os anos 70. Com a mostra se desdobrando ao Museu de Arte Contemporânea de Goiás (MAC), os sócios Lucio Albuquerque, Antônio Almeida e Carlos Dale acenam para que haja maior integração e até mesmo ampliação do ecossistema artístico no Centro-Oeste brasileiro.
Mercado goiano
Segundo o crítico Divino Sobral, o investimento feito pela Cerrado demonstra uma certeza na potencialidade da arte e do mercado goiano. Ele destaca que há muito tempo uma aposta de grande porte não era feita na área. Nos anos 1970, contextualiza o estudioso, Célia Câmara criou a Casa Grande Galeria, responsável pelo que Sobral define como “afirmação do mercado local e da inserção da produção modernista mais celebrada da cidade”. Na década de 90, Marina Potrich introduziu o colecionismo de obras contemporâneas.
“A Cerrado vem ocupar uma lacuna enorme que ficou vazia por muito tempo. A falta de mercado faz muitos artistas migrarem para São Paulo”, afirma Sobral ao Diário da Manhã, acrescentando que a Cerrado traz um know-how que a cidade ainda não possui. “Há um interesse explícito por parte dos galeristas na produção artística e curatorial contemporâneas, o olhar voltado para os melhores e mais representativos nomes de Goiás, que muitas vezes sequer são apresentadores aqui justamente por falta de galerias de porte.”
Dentre os nomes de destaque, pode-se citar o de Dalton Paula. Nascido em Brasília e criado em Goiás, o artista, ex-bombeiro, se consagrou com obras nos acervos do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), do Art Institute of Chicago e participou da Bienal de São Paulo, em 2016, na 32ª edição. No ano passado, expôs a série “Retratos Brasileiros”, que teve como curadora convidada a historiadora Lilia Moritz Schwarcz. Hoje, Dalton possui o ateliê e a escola de artes Sertão Negro, localizado na Rua Goiazes, no setor Shangry-la.
“Eu não via corpos negros nas capas de revista, sentia-me deslocado, e então, ao frequentar quilombos, senti que essa invisibilidade do negro era como uma doença que precisava de cura”, afirmou o artista em entrevista ao Estadão, republicada pelo DM. Ele já pintou personalidades como Lima Barreto e Machado de Assis, além de ter ilustrado dois livros infantis do cantor e compositor Itamar Assumpção. Seus retratos custam cerca de R$ 20 mil.
Para Marcelo Solá, artista que já participou de importantes exposições no Instituto Tomie Ohtake, na Funarte, nos Museus de Arte Moderna do Rio de Janeiro e de São Paulo, no Centro Cultural São Paulo, no Festival de Cultura da Bélgica, na 25ª Bienal de São Paulo, Dalton leva o nome de Goiás para o Brasil e o mundo. “E retrata a história dele, do povo dele, da sociedade”, explica Solá ao repórter, por telefone – está com a exposição “Do Brutalismo à Vertigem do Olhar” na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo.
Cena pujante
Outros trabalhos para os quais é preciso estar atento são os de Talles Lopes, de Anápolis, que possui obra dedicada a investigar o moderno no Brasil e a marcha de ocupação do oeste. Além dele, Estêvão Parreiras se notabiliza por desenhos atravessados por questões religiosas e com um imaginário que, para o crítico Divino Sobral, é tributário da arte popular. Destaca-se ainda Hal Wildson, hoje em São Paulo, dono de criações politizadas. E tem ainda Manuela Costa Silva, que vai do vídeo à aquarela, e Benedito Ferreira, artista que faz indagações sobre memória, arquivos e goianidade. “São muitos nomes”, resume Sobral.
O artista visual Gerson Fogaça, censurado no Museu dos Correio por causa de exposição com escritor cubano Pedro Juan Gutiérrez, afirma que rola um movimento interessante na cena artística goiana, lembrando um pouco aquele dos anos 80. “Tinha um monte de artistas, galeristas, marchands e colecionadores aqui em Goiânia. Era um ecossistema artístico bem completo. Mas a real é que o momento agora é diferente. Não dá para comparar direito.”
Na visão de Fogaça, existem novas tendências tecnológicas e formas de expressão artísticas, próprias da contemporaneidade. “Tem uma galera talentosa produzindo arte incrível por aqui. E, aos poucos, acredito que o ecossistema artístico vá se fortalecendo e se expandindo. É um processo, mas a gente tá no caminho certo”, analisa o artista, para quem em Goiás, apesar da cena cultural diversificada e da rica tradição nas artes visuais, ainda falta infraestrutura para receber exposições, eventos e atividades relacionadas ao meio.
Afinal de contas, o boom que se tem hoje é melhor do que aquele dos anos 70 e 80? Para Marcelo Solá, sendo a história da arte cíclica, o momento atual está melhor. “Quando comecei – lembro da dona Célia Câmara -, não tinha internet. Era difícil fazer portfólio. Hoje, com as dinâmicas de comunicação, o curador já consegue ter uma noção. É muito mais pujante a cena”, ratifica o artista, cujos trabalhos, além de revelar a maneira singular na qual vê o mundo, também guarda referência que recebeu de Jean-Michel Basquiat.