As várias faces de Orson Welles
Diário da Manhã
Publicado em 6 de maio de 2015 às 02:03 | Atualizado há 4 meses
Há exatos 100 anos, nascia na então pequena cidade de Kenosha, nos Estados Unidos, o cineasta Orson Welles, considerado um dos primeiros gênios do cinema da primeira metade do século XX. Através das sofisticadas técnicas de produção de filmes, ele deixou uma herança indispensável para a evolução do cinema e para o estudo dos futuros realizadores. Cidadão Kane, de 1941, é até hoje apontado como um dos filmes mais importantes já realizados.
O filme foi construído graças ao primoroso trabalho realizado por Welles que exercia funções diversas no longa-metragem. Atuou, produziu, escreveu e dirigiu. Exploração do campo, variações de ângulo, não linearidade da narrativa e montagem não cronológica são exemplos de novidades nunca vistas até então no cinema, que hoje vem se desmembrando em cada vez mais novas técnicas.
Além do excelente trabalho realizado como cineasta, que rendeu a ele um invejado status de mito do cinema (com outros filmes surpreendentes como A dama de Xangai, 1947 e A marca da Maldade, 1958), algumas outras prodiginosidades de Orson Welles ganham destaque em sua biografia. O dinamismo do realizador já deu-lhe a oportunidade de trabalhar também no rádio e no cinema, com obras bastante marcantes.
A Guerra DOS MUNDOS
Um dos feitos que impulsionaram a carreira de Orson Welles no cinema foi a produção do roteiro radiofônico A guerra dos Mundos, em 1938, quando ele tinha 23 anos. A obra baseada em um livro de H.G. Wells foi adaptada para o rádio de forma a simular uma invasão alienígena verdadeira. Muitas pessoas entraram em pânico ao acreditar na história contada na rádio. O fato entrou para a história do jornalismo e fez com que a percepção do público à mídia tomasse um novo rumo no quesito credibilidade.
Eduardo Meditsh em sua dissertação O pecado original da mídia, explica como a peça foi desenvolvida para que atingisse a adesão do público. “Já no segundo minuto da peça, somos levados a esquecer que estamos ouvindo uma obra de ficção, pois aparentemente esta foi interrompida por um boletim meteorológico absolutamenre verossímil”. Apenas no final da peça o público pôde tranquilizar-se, mas até lá, muita gente acreditou na destruição de vários bairros de Nova Jersey por seres de outro planeta.
Cidadão Kane
Um dos filmes mais respeitados da história, citado em 99,9% das listas de melhores produções de cinema já realizadas, Cidadão Kane surge a partir da narração não explícita da história do criador da imprensa marrom nos Estados Unidos, o magnata dos meios de comunicação William Randolph Hearst. O biografado sentiu-se extremamente irritado com o retrato de sua carreira suja prestes a ser lançado nos cinemas, o que gerou inúmeros problemas para Orson Welles, como conta Mauro Castelo Branco de Moura, filósofo da UFBA, em seu trabalho Cidadão Kane: a saga do milionário desditado, de 2004.
“William Randolph Hearst [1863-1951], fundador da Hearst Corporation, o qual, reconhecendo-se retratado no enredo e vestindo plenamente a carapuça, pretendeu evitar, por todos os meios a seu alcance, que o filme estreasse”. Ao contrário do que Hearst pensava, suas tentativas de impedir o lançamento do filme acabaram alavancando ainda mais seu sucesso. “esta magnífica obra cinematográfica nasceu, portanto, marcada pela polêmica, aliás, um dos traços distintivos do cineasta”, afirma.
Mathews Moura, da rede de cinéfilos Filmow, comenta os pontos positivos e negativos ao assistir o famoso filme. “O drama eu não achei tão atrativo, mas o filme tem uma visão bem atual em relação aos meios de comunicação, o poder que uma pessoa tem em mãos, quando é um formador de opinião”, opina. Quanto à parte técnica, ele aprova completamente a obra. “Welles foi impecável na montagem do filme, iluminação, planos, fotografia, transições muito boas”, completa.
NO Brasil
Vários motivos fizeram com que a passagem duradoura do diretor Orson Welles pelo Brasil, no ano de 1942, quando acabara de realizar Cidadão Kane, se consolidasse como uma série de eventos bizarros. Fernão Pessoa Ramos, professor de artes da Unicamp, descreve o motivo que trouxe Welles para as terras brasileiras em seu artigo A Inclusória pérola brasileira de Orson Welles, de 1995. Ele veio em busca da gravação de imagens do carnaval carioca e de jangadeiros de Fortaleza para a composição do documentário Tudo é verdade, nunca concluído.
“A viagem de Welles ao Brasil e a feitura de Tudo é verdade (It’s all true) devem ser analisados como parte de um todo composto pelos primeiros filmes do diretor realizados entre 1940 e 1942. As tomadas realizadas em 1942 no Brasil vêm compor o primeiro núcleo cinematográfico da obra de Welles, que é seguido por alguns anos de inatividade”, afirma.
Outro motivo apontado pelo professor para a vinda de Welles ao Brasil na década de 1940 baseava-se em questões políticas. O governo americano estava preocupado com a relação diplomática do Brasil com inimigos da Segunda Guerra Mundial, e aproveitou-se do sucesso do cineasta impulsionado pelo lançamento de Cidadão Kane. “É nesse momento que recebe um convite de seu país para vir ao Brasil realizar um filme, dentro de uma política de boa vizinhança do governo norte-americano, assustado com as possíveis simpatias de Getúlio Vargas para com os países do Eixo”, descreve.
O diretor enfrentou vários problemas, como a morte de um dos canoeiros, que incentivado pelo aumento de oferta salarial de Welles, decidiu embarcar quando o clima estava perigoso para isso. “A história sempre foi irô– nica com Welles. Jacaré (líder jangadeiro que passou sua vida no mar) viaja milhares de quilômetros em mar aberto, do Ceará ao Rio de Janeiro, para vir morrer afogado, em plena baía da Guanabara, durante uma filmagem comandada pelo diretor que tentava reconstituir seu feito”, escreve o professor Fernão Ramos.
O hotel Copacabana Palace, o mais famoso do Rio de Janeiro, recebeu Orson Welles que acabou ficando lá por cerca de seis meses. Um dos episódios mais pitorescos da história do hotel, que hoje é motivo inclusive de campanha publicitária, foi protagonizada pelo cineasta, como descreve o site de turismo Time Out – Rio de Janeiro. “Orson Welles jogou um sofá pela janela (que acabou na piscina), após uma briga com Dolores del Rio”.
A farsa do Batman
A passagem de Orson Welles pelo mundo do cinema agregou à imagem dele a fama de nunca concluir seus filmes, como explica o professor Fernão Ramos. “O diretor Orson Welles construiu durante sua vida o mito de um artista que não conseguia concluir as obras que iniciava”. Utilizando-se dessa fama, o desenhista de quadrilhos Mark Millar espalhou um boato em 2003 de que um desses filmes seria versão cinematográfica de Batman, no ano de 1946.
A repercussão desse boato fez com que o filme fosse adcionado à irônica lista ‘Os Melhores Filmes Jamais realizados’ (The Greatest Films Never Made), do resenhista de cinema Vodiak, no portal Rate Your Music em 2010. Ele descreve personagens do possível elenco. “Orson Welles tentou trazer o Cavaleiro das trevas para as telonas, tomando para si o papel principal de Bruce Wayne, completando o elenco de estrelas da época com nomes como Basil Rathbone, que interpretaria o Coringa e Marlene Dietrich como a Mulher-gato.