Antes de dizer que Woody Allen é sempre o mesmo, vale a pena lembrar que Woody Allen são muitos. A face que apresenta neste seu filme de exílio, "Golpe de Sorte em Paris", é possivelmente a mais sombria de todos os seus 50 filmes: Woody carrega no lombo a marca do cancelamento que sofreu nos EUA.
Como que para compensar esse sentimento, e talvez para agradar seus hospedeiros, ou ainda para tentar compreendê-los, Allen recorre a temas de Jean Renoir (a caça, de "A Regra do Jogo") e François Truffaut (o detetive conjugal de "Beijos Roubados"), com quem parece dialogar nesse momento.
A diferença é que Renoir sorri com ironia da tragédia que se desenha em seu filme e Truffaut nos faz rir com a falta de jeito de seu detetive. Já Allen, desta vez não sorri nem nos faz rir. Seus personagens vagueiam entre o romance, o suspense e a tragédia, mas sem a ambiguidade que virou uma espécie de marca registrada do autor nova-yorkino.
No começo lá está a jovem Fanny (Lou de Laáge), que caminha pela rua despreocupada, quando é abordada por Alain (Niels Schneider), colega de velhos tempos e hoje escritor, que de imediato declara o amor que sente por ela e manteve secreto desde que eram colegas de colégio. Agora, acredita ele, teve seu golpe de sorte: reencontrá-la por acaso.
Ocorre que Fanny é casada com o rico Jean (Melvil Poupaud), homem de negócios simpático e enigmático, que não fala de seus negócios, resume tudo dizendo que faz os ricos ficarem mais ricos. Quando Fanny começa a dar atenção ao jovem escritor, Jean logo demonstra que não tem a menor intenção de sair da história como o marido traído. Não é apenas simples vaidade: ele de fato ama, ou acredita amar, sua mulher.
Claro, há um pouco de Woody Allen em cada um desses personagens: Fanny e sua leveza, Jean e seu apego aos negócios, Alain e seus livros. Mas o filme começa a se aproximar, aqui, daquele lado dos filmes de Claude Chabrol em que pessoas simples são capazes dos pensamentos e atos mais abomináveis. Veremos, em "Golpe de Sorte", alguém que não se limita a matar alguém, mas ainda atira seu cadáver no mar para que nunca seja encontrado --prática repulsiva usada por diversos regimes militares latino-americanos.
Em todo caso, existe ainda uma quarta personagem na história, a que se pode chamar de tipicamente woodyalleniana. É Camille (Valerie Lemercier), a mãe de Fanny, fã de romances policiais que a horas tantas se converte em detetive amadora. É bem próprio de Woody esse tipo de personagem que se entrega a uma tarefa fora de suas atividades habituais, movida por sua paixão (no caso, por livros policiais) ou mesmo para escapar à rotina.
Desde que Camille entra em ação, o filme passa do drama ao suspense policial. Um policial afeito a regras clássicas, com um vilão capaz de enfileirar vilanias tão literárias quanto literais (jogar corpos no mar, por exemplo). Ainda assim, mesmo nesse registro, Woody Allen parece um pouco deslocado — como sempre que sai de Nova York — mas é evidente seu esforço para entender um povo e um lugar bem diferentes.
Daí haver algo surpreendente na ambientação deste filme. Exemplo: de início, Alain parece habitar um pequeno apartamento "de escritor". Mais tarde, o mesmo apartamento aparece bem maior e com mobiliário mais classudo. É como se no começo o filme procurasse um Quartier Latin que já não existe mais e mais tarde voltasse a atenção para outros aspectos da vida parisiense.
No fim das contas, embora falte ao filme aquela intimidade que Woody Allen costumava tercom as paisagens e personagens do seu país (nova-yorkinos em especial), esse é um problema que o cineasta maneja com habilidade.
O sentimento sombrio que parece habitá-lo, é outra história: em "Golpe de Sorte", todo golpe do acaso traz algum contratempo ou mesmo azar. Os tempos em que Woody afirmava que tudo pode dar certo (título do seu filme de 2009) estão, ao menos por ora, arquivados. Aqui, no fim, todos os personagens saem, de algum modo, perdendo.
Não se trata de um Woody Allen ressentido, isso não. Sombrio, certamente, mas não como no tempo em que tentava imitar Ingmar Bergman. Desta vez as feridas estão abertas. Impossível não admirar um artista que, mesmo quando não nos faz rir, mantém tanta intimidade com seus sonhos e também pesadelos.