Luiz Gustavo Medeiros, escritor que tem ajudado a oxigenar literatura goiana, colocou no papel a primeira frase. Veio-lhe à cabeça, então, uma cena. Voz narrativa do romance “A União das Coreias”, Paulo relê comentários que Rebecca fez acerca de um texto.
“Eu só tinha um esboço dos personagens na cabeça e não fazia a menor ideia de como tudo se desenrolaria. As únicas certezas eram o narrador e o período em que a história se localizaria”, lembra Luiz, que lança hoje a obra num evento realizado na Livraria Palavrear, a partir das 17h30.
A eleição de 2018 atravessa Paulo. Sabemos que foi um pleito no qual parte da sociedade se amedrontara diante do flerte perigoso com práticas situadas à extrema-direita. Saudoso da ditadura militar, um certo Jair Messias Bolsonaro se elegeu presidente do Brasil, numa disputa contra o ex-prefeito de São Paulo e ex-ministro da educação Fernando Haddad.
“Desde o final de 2018 eu já vinha pensando em escrever um romance que tivesse como pano de fundo as eleições daquele ano. Não por inclinação política, mas como ferramenta para a criação de personagens”, explica o romancista, que lançou a obra “O Corpo Útil”, em 2021, pela Patuá. Esse livro conquistou o Prêmio Hugo de Carvalho Ramos do ano anterior.
Ao DM, Luiz rememora episódio triste da vida goianiense, que aconteceu dois anos antes da eleição: pai mata filho por não concordar com sua militância contra a PEC 241. Em seguida, o homem tirou a própria, o que causou perplexidade na opinião pública. Dois dos maiores jornais brasileiros, “Folha de S. Paulo” e “O Estado de S. Paulo”, noticiaram o fato.
Proposta pelo governo Michel Temer (cacique do MDB alçado ao poder após impeachment de Dilma Rousseff), a medida propunha que investimento em assistência social, educação e saúde fosse congelado por 20 anos. Na tentativa de pressionar o Congresso Nacional, estudantes ocuparam cerca de 15 prédios na Universidade Federal de Goiás (UFG).
Luiz conta que, sendo servidor do Crea, atendeu a mãe daquele jovem. Ela queria apresentar a certidão de óbito e cancelar o registro do ex-marido. “Lembro também de assistir a apuração das eleições de 2018 em um bar num bairro de classe média alta da cidade e um homem sacar uma arma, depois do resultado se confirmar, só pra exibi-la”, diz.
Quis examinar essa situação, esse afunilamento da tolerância, tentar me aproximar do convívio entre essas pessoas que não compactuam das mesmas ideias, num momento em que ainda pareciam se suportar. Luiz Gustavo Medeiros, escritor
Com 152 páginas, “A União das Coreias” começou a ser escrito entre março e abril de 2020. Às vias de uma pandemia, o país se dividiria naqueles que seguiram recomendações da OMS e os que adotariam comportamento anticiência. “Quis examinar essa situação, esse afunilamento da tolerância, tentar me aproximar do convívio entre essas pessoas que não compactuam das mesmas ideias, num momento em que ainda pareciam se suportar.”
É o segundo livro de Luiz – e seu primeiro romance. Escrito em prosa fluída, “A União das Coreias” aponta para temáticas e nuances da nova geração de escritores surgida em Goiás, como descrições da paisagem goianiense, as ruas da metrópole e as noites (excitantes) do Festival Bananada. Os personagem – ao se movimentarem – criam memórias urbanas.
Duas décadas
Embora tenha nascido no Rio de Janeiro, em 1990, o romancista vive em Goiânia há mais de 20 anos. Conhece bem a alma encantadora das ruas. Pelas palavras de Luiz e pela voz narrativa de Paulo, somos apresentados ao amor, ao sexo, à política, aos abismos sociais e aos dilemas morais. “Qualquer cidade, qualquer tema, qualquer coisa pode ser transformada em literatura. Até a adutora da rua 10 pode ser transformada em literatura”, reflete.
O título da obra nasceu a partir da tese de doutorado “Cartas Sobre o Envelhecer”, da psicóloga Luciana de Oliveira Pires Franco. A pesquisadora cita doc chamado “A Vida em um Dia”, que registra um determinado dia na vida de pessoas ao redor do mundo. Há relato de um homem que atravessa a Ásia de bicicleta sonhando com a união das Coreias.
“Consegui me aplicar em uma disciplina rigorosa, escrevia um parágrafo ou dois todos os dias de segunda a sexta. Mas não tenho uma rotina permanente de escrita”, afirma Luiz, que é graduado em Ciências Sociais pela UFG, tem título de mestre em Literatura pela UnB e se doutora atualmente em Estudos Literários na UFG. Contudo, acredita que sua formação não teve peso grande na escrita, já que a graça da literatura é se pôr no lugar do outro.
“O que fiz foi explorar um pouco as minhas experiências, especialmente as funções administrativas que eu desempenho no meu trabalho, pra encurtar alguns caminhos na hora de compor o personagem”, diz o escritor, acrescentando que o desafio é “saber se entregar ao trabalho literário sem que, fazendo isso, a parte pragmática da vida seja posta de lado”.
Luiz busca auxílio na leitura, não na música, para cujo curso – aliás – chegou a prestar vestibular. Diz, todavia, que a formação de um leitor se dá a partir da conexão que ele estabelece com o que lê. “Essa conexão se baseia no prazer provocado pela leitura, então acredito que toda boa literatura – infantil ou adulta – pode ter esse caráter formativo.”
A UNIÃO DAS COREIAS
Luiz Gustavo Medeiros
quinta, 4 , às 17h30
Livraria Palavrear
Rua 232, 338, Universitário
152 páginas
R$ 54