Difícil ter alguma novidade a se falar sobre a morte de Amy Winehouse. E sobre a vida? Amy experimentou os prazeres artificiais e se apaixonou por jazz, deixou explícito seu amor ao gênero afro-americano e provou o dissabor de um casamento vocacionado ao fracasso. Pensando bem, a voz rouca (desconcertante, diria eu) da artista ainda tem muito a nos dizer.
Quem acredita nisso é a cineasta Sam Taylor-Johnson, diretora de “Back to Black” – em cartaz nos cinemas a partir desta quinta, 16. Marisa Abela interpreta Amy, numa produção que exigiu esforço atlético da atriz. A cantora foi retratada nos últimos anos por um livro de memórias escrito pelo pai, um documentário oscarizado e exposições em museus europeus.
Conforme depoimento à “New Music Express”, revista britânica especializada em música, Marisa teve uma experiência “incrível”. Ela destacou que a preparação exigida para o papel lhe deixou arrebatada. “Tive quatro meses para realmente entrar no modo preparação. Foi hardcore, mas foi ótimo. Se aprendi algo com Amy, foi não ter medo”, revelou a atriz.
Amy nos regozija. Lançado em 2003, o disco “Frank” carrega um quê daquela sonoridade difundida pela Motown. Mesmo assim, jamais renunciou ao rap. Essa obra pôs Amy dentre as cantoras mais aclamadas surgidas nos anos 2000, vendendo milhões de discos, ganhando cinco prêmios Grammy e consagrando uma estética retrô-jazzística-fodona – coisa de diva.
Acordes jazzísticos tocados na guitarra se misturam à batida hip-hop. Ritmo gostoso, não? Você anseia por ouvir isso. Ouvir duas vezes. E ouvir três vezes. E ouvir quatro vezes. “You Sent My Flying” tem quase sete minutos. E, no entanto, parece que são cinco segundos. A música flutua pelos lados da cozinha baixo-bateria. Sim, tudo ali funciona muito bem.
Aos 19 anos, Amy Jade Winehouse já era uma estrela em ascensão no Reino Unido. Mas foi o disco “Back to Black”, gravado com os produtores Mark Ronson e Salaam Remi, que a transformou numa sensação internacional. Amy se trancou no estúdio com a banda de soul norte-americana Dap-Kings: batidas elegantes, letras sombrias, deboche afinado.
“Não leio nada e, se um amigo começa a me contar, eu desligo na cara dele. Não quero ser tirado do meu caminho” Sam Taylor-Johnson, diretora de “Back To Black”
“Back To Black” foi marinado na organicidade. Era o rhythm and blues do século 21. Possui – lógico – canções envolventes, como “Rehab”, “I'm Good” e “Love Is a Losing Game”. É R&B moderno mas docemente retrô, com o qual a cantora vendeu milhões de discos e, fundamentalmente, demonstrou sua essência sarcástica, contestadora e autodepreciativa – numa obra que virou matriz do soul às futuras gerações.
É aquela frase: tentaram mandá-la para a reabilitação, mas ela disse “não, não, não” – e Amy sofria o desamor a olhos vistos. Chegamos, então, ao ponto do qual parte “Back To Black”. Em pouco mais uma hora e meia, a cinebiografia narra o relacionamento entre a cantora e Blake Fielder-Civil, responsável por influenciar o disco de mesmo nome, lançado em 2006.
Sam Taylor-Johnson, diretora de “Back To Black”, afirma que Amy conta a própria história por meio de suas canções. Portanto, usá-las como fonte para o filme teria contribuído para que a narrativa fosse construída pela perspectiva da cantora, uma vez que ela vocaliza nas composições sentimentos vividos no momento em que as canções foram criadas.
Uma semana após o filme estrear no Reino Unido, Taylor-Johnson declarou que não tinha lido críticas a “Back To Black”. Tanto veículos de imprensa quanto amigos de Amy não aliviaram nos comentários. O jornalista Nick Levine, da tradicional “New Music Express”, chama atenção para o fato de que a atriz Marisa Abela parece ter caído numa cilada, ao parecer educada, enquanto o “The Observer” destacou “erros de julgamentos”.
Vida adocicada
Com contralto matador, sombra preta sublinhando os olhos, roupas invariavelmente curtas e um monumental penteado colmeia escorrendo pelos ombros, a cantora londrina-judia Amy Winehouse fez a soul music ressurgir nos anos 2000 evocando as divas norte-americanas que começou a ouvir graças a avó, ex-cantora de jazz. Amy pôs o planeta a cantar junto com ela suas inquietações. Doce e meiga, sofria de bulimia desde a adolescência.
Tyler James, amigo de longa data, entendeu que o filme adocicou a vida de Amy. Por sua vez, Fielder-Civil, interpretado por Jack O´Connell, disse que se ver na telona foi “quase terapêutico”. “Não leio nada e, se um amigo começa a me contar, eu desligo na cara dele. Não quero ser tirada do meu caminho”, revelou Taylor-Johnson ao “New York Times”. Ela dirigiu “Cinquenta Tons de Cinza” e “O Garoto de Liverpool”, sobre John Lennon.
À base de heroína e álcool, Amy e Fielder-Civil iniciaram um namoro tóxico, definido por ele como “nada saudável”. Ela tatuou o nome do parceiro no seio esquerdo. Apesar da infância calma, dos colégios em que estudou e da ligação com o pai, Amy desenvolveu tendência depressiva na adolescência. Talvez fosse a tal melancolia falada por Fernando Pessoa.
Rouca e intensa, a voz expressava as ondulações de uma alma inquieta. Como Sarah Vaughan, Billie Holiday e Janis Joplin, cantoras que marinaram o sofrimento em uísque e cigarro, Amy saiu da vida de forma precoce, aos 27 anos. Contudo, “Back To Black” falha ao mostrar a artista começando a se drogar sozinha. É o oposto do que mostra o documentário “Amy”, dirigido por Asif Kapadia: Fielder-Civil seria, na verdade, um aproveitador.
Taylor-Johnson acha que não há relevância alguma em fazer pré-julgamentos a respeito de Blake. Ao contrário, a cantora se envolveu numa paixão tórrida, conforme é possível ler em entrevistas publicadas nos anos 2000. Marisa Abela reflete: nada deve ser omitido de uma cinebiografia sobre Amy Winehouse. E, no entanto, certos aspectos foram – como a apresentação no Glastonbury, em 2008, quando a cantora bêbada deu um soco num fã.
Amy está comportada em “Back to Black”. Segundo reportou Simran Hans, no “New York Times”, ela canta “Me and Mr. Jones” sem bater em ninguém. Essas polêmicas, todavia, não prejudicaram o faturamento do filme. Só no Reino Unido e na Irlanda a cinebiografia chegou ao primeiro lugar nas bilheterias, somando cifra milionária. É agora de irmos ao cinema.
Back To Black
Hoje nos cinemas
Taylor-Johnson, diretora
Marisa Abela, atriz
Jack O´Connell, ator
Cinebiografia
107 minutos