“Bateria é o coração da música”, afirma instrumentista pioneiro do rock em Goiás
Marcus Vinícius Beck
Publicado em 16 de fevereiro de 2024 às 21:16 | Atualizado há 4 meses
Com camisa branca, calça jeans e sapato preto, Moka Nascimento abre um sorriso enquanto se dirige calmamente à minha direção. “Bom dia”, digo-lhe, levantando da cadeira em que a recepcionista me pediu para aguardá-lo. Então nossas mãos se encontram, num aperto que dura dez ou quinze segundos, não mais do que isso. Na sequência, repouso-as sobre seus ombros. Avalio seus dedos: é com eles que Moka segura as baquetas, deixa uma música triste mais triste, coloca pra cima um refrão e até estimula casais na pista de dança a tentarem algo mais, como tantas vezes o músico fizera nos bailes transcorridos pelos anos 1970.
Moka quis ser baterista quando viu Ringo Starr. Eram os anos 60, época em que os Beatles revolucionaram a cultura pop. Havia um programa de animação que passava na televisão. Claro que o goiano não perdia um episódio. Ali começou a amar o bumbo, a caixa, o chimbal e os pratos, artilharias de munição afinadas cuja finalidade básica é produzir alto impacto sonoro. O menino gostou tanto da música tocada por Lennon, McCartney, Harrison e Starr que, ao se dar conta, num certo momento, não tinha mais volta: estava apaixonado.
Moka pirou quando viu Ringo Starr tocar bateria nos Beatles. Foto: Divulgação
Os anos 60 passaram à história como a década mágica definida pelas melodias, pelos ritmos e pelas letras dos Beatles. Rodrigo Merheb, historiador, explica que o rock no período conseguiu agregar sentimentos subversivos, não apenas no campo político, mas sobretudo como expressão “visceral” da sexualidade em oposição aos valores da classe média. “O rock começava a firmar sua autonomia e exibir musculatura exatamente quando os conflitos sociais passavam pelo período de maior radicalização”, diz, na obra “O Som da Revolução”.
Quando chegaram os anos 1970, contudo, o som a ser escutado era progressivo. Rolava Emerson, Lake & Palmer, Jethro Tull e Pink Floyd, bandas cujos compassos rítmicos tinham duas, três, quatro, às vezes cinco até viradas! Erudição era sinônimo de modernidade. Alguns críticos definiram, pejorativamente, essa faceta do rock como “penteadeira de bicha”, caso do jornalista Ezequiel Neves, à época assessor de imprensa da gravadora Som Livre. De toda forma, ninguém é maluco de dizer que não se trata de uma música requintada.
Moka sabia disso. Curtia Pink Floyd, mas também Led Zeppelin e Black Sabbath, dois grupos de sonoridade agressiva. E, sem dúvida, Hendrix. Nos anos 70, integrou a banda do cantor Odair José, conhecido então como “terror das empregadas” pelos hits “Pare de Tomar a Pílula”, “Vou Tirar Você Desse Lugar”, “Deixe Essa Vergonha de Lado” e “A Noite Mais Linda do Mundo”. Anos depois, como também é aficionado por blues, acompanhou Nasi, vocalista da banda Ira!, num projeto solo dele envolvendo músicas do estilo afro-americano.
Músico foi um dos fundadores na década de 1970 a banda Língua Solta. Foto: Divulgação
O baterista fundou nos anos 70 a banda Língua Solta, que passara à história do rock goiano. Ao sair dela, deixou seu lugar para o músico Leo Jaime, seu aluno de bateria. Uma reportagem publicada neste Diário da Manhã descreve que o charme do grupo estava na guitarra “bluesy” tocada por Almir Moreira, ao estilo Keith Richards, com bends – técnica que consiste em subir a nota pra casa acima – inconfundíveis. Era a assinatura musical dele.
Em sua carreira, que já dura mais cinco décadas, Moka lançou discos, relançou trabalhos instrumentais, flertou com o afro-cubano, casou-se com o rock progressivo, curtiu a salsa, mandou ver o fusion-jazz, até baião e funk ele tocou. Na UFG, estudou teoria musical com o maestro Geraldo Amaral e, paralelo à vida acadêmica, ou nem tão paralelo assim, fez parte das bandas Akuarius Seven, Hippies, Cordas e Metais, Tarântulas, Os Matuskelas (DF), Os Gorilas (MG), Vide Bula. Apresentou um dos melhores covers do grupo britânico Pink Floyd no Brasil, numa releitura sinfônica e emocionante da ópera-rock “The Wall”.
Na última segunda-feira de janeiro, conversei com o músico na sede do Sindicato dos Músicos Profissionais de Goiás, na Vila Nova. Deixamos o encontro para as dez e cinco da manhã, num dia de sol. Moka, que nasceu em 12 de março de 1954, me convida a subir os dois lances de escadas que darão à sala na qual ficaremos mais à vontade para papear. Embora tenhamos conversado por duas horas, trocamos mensagens por meio do WhatsApp nas semanas seguintes, de modo a tornar a redação final desta Entrevista Histórica mais saborosa. Leia a seguir:
Baterista se tornou conhecido como ‘Pai do Rock Goiano’. Foto: Marcus Vinícius Beck
DM – Como se define?
Moka Nascimento – Pode-se dizer que embora eu toque diversos gêneros musicais, sou reconhecido como o “Pai do Rock Goiano”.
DM – Acho que nunca te perguntei, Moka: você curte o rock da banda The Who? Keith Moon tinha um estilo todo estranho de tocar, era uma coisa animalesca…
Moka – Curto algumas músicas da ópera-rock “Tommy”, lançada em 1969. Keith tinha estilo único, ou estranho de tocar, como você mesmo colocou. Ele não fazia uso de chimbal, nem contratempo ou hit hat. Mas, independente disso, foi grande baterista. Era portador de altas performances. Tinha uma interessante personalidade musical.
DM – Qual baterista é o seu favorito, se é que é possível eleger um só?
Moka – Ah, John Bonham, bicho!
DM – Por quê?
Moka – A sonorização do Led Zeppelin é única. Jimmy Page era músico de estúdio. John Paul Jones, excelente arranjador. Os caras eram todos cavalos. Page teve a sacação de dar uma ênfase maior para o John Bonham, porque o cara tinha uma pegada extraordinária, um senso criativo fora do comum. Você pode sentir o tamanho da batera do Zeppelin quando vai ouvi-los. Até hoje, é algo complexo. Bonham alterna compassos simples e compostos. Foi também o grande responsável por levar o soul para o rock’n roll.
“Jazz veio depois. Depois, inclusive, de eu já ter tocado rock, música popular brasileira e fusion, estilo surgido em Woodstock, no ano de 1969”
DM – Um dos grandes momentos da bateria dentro do rock ocorre no “The Jimi Hendrix Experienced”, com Mitch Mitchell levantando a bola para Hendrix lá atrás.
Moka – Perfeita colocação! Mitchell é oriundo do jazz. O que ele fez? Ele uniu jazz e rock. Naquela época, não tinha esse papo de que o rock tinha 50 ramificações. Era rock e ponto. Mitchell chegou com essa onda. E Hendrix se sentia tão à vontade – você pode observar isso nos vídeos – que fica o tempo todo olhando pro cara: onde tá indo? Mitchell tinha uma outra visão pra música do Hendrix. Com o baixista Noel Redding, fizeram um som grandioso.
DM – O que chegou primeiro à sua vida: jazz ou rock?
Moka – Rock. Jazz veio depois. Depois, inclusive, de eu já ter tocado rock, música popular brasileira e fusion, estilo surgido em Woodstock, no ano de 1969. E soul, a música negra americana. Soul é fantástico, bicho! Sempre meto um soul nos meus discos. São gêneros da minha formação. No caso do soul, há suingue ditado pela bateria. James Brown – pai do soul – chegava no cara do trombone e perguntava: bicho, que instrumento é esse aí? Trombone, dizia. Ele respondia: errado, é bateria. Chegava no guitarrista: sabe que instrumento é esse? A mesma coisa: bateria! Porque tudo é a bateria. A bateria é a primeira coisa.
DM – Qual é a receita para formar um bom músico?
Moka – Eu acredito, Marcus, que pra quem pretende se tornar músico – diria mais, pra quem quer virar músico de verdade – tem que passar por bandas de baile. É a primeira escola. Escola onde se toca infinitas vertentes: música de todo o mundo, de todas as etnias da Terra. Veja os principais expoentes da música brasileira: Milton Nascimento, Hélio Delmiro, Gilberto Gil e Djavan. Todos esses caras vieram de alguma banda de baile.
“Bares são afluentes das bandas de baile. Iniciamos na década de 70, 80. Ricardo é contemporâneo, assim como o baixista Bororó, grande músico brasileiro”
DM – Então, Moka, a banda de baile seria a melhor escola pra quem quer começar?
Moka – Pô, bicho, a banda de baile sempre foi a melhor escola. Nosso amigo Ricardo Leão, formado em piano, conservatório, aquele negócio todo, cita num documentário que acreditou na profissão de músico. E, cara, quando ele foi tocar deixou todo mundo impressionado. Ele já foi da segunda geração do boteco. É considerado um dos maiores músicos brasileiros e foi pioneiro na música de bar de Goiânia. Bares são afluentes das bandas de baile. Iniciamos na década de 70, 80. Ricardo é contemporâneo, assim como o baixista Bororó.
DM – Bororó comprova isso que discutimos, pois ele tocou com todo mundo, não?
Moka – Tocou, tocou. Bororó, cara, tocou junto comigo numa banda de baile chamada Akuarius Seven. Bicho, era uma super banda, altos cantores, instrumentistas fenomenais! Ele trouxe um primo dele, de Belo Horizonte (MG), que já tinha tocado com a nata de Minas – aquela galera toda de lá. Nós começamos, nessa época, a desbravar os bailes. A gente tocava os populares: Jackson Five, Carpenters. Claro, música black, pessoal da Motown. Um dia, Bororó chegou – olha que loucura, bicho! – com disco do West, Bruce and Laing, um dos maiores rocks do mundo! Tinha também um do Santana, um do Black Sabbath, um do Led Zeppelin, um do Yes. Pensei comigo mesmo: pô, vou me dar bem com esse cara.
DM – Nessa época, aflorava o movimento rock’n roll, eram dias de paz e amor, festival de Woodstock ainda estava com a fumaça acesa…
Moka – Sim, Marcus, e nós partimos pra tirar Led Zeppelin. Aí o negócio começou a complicar. Tinha John Bonham na batera, o baixo do John Paul Jones, a guitarra do Jimmy Page. Tivemos que trabalhar pra tirar aquelas maravilhas. Pra quem não sabe, o Bororó também canta. Ele cantava as músicas do Led Zeppelin, do Black Sabbath. Tinha uma voz similar àquela do Robert Plant. Era uma coisa impressionante de ouvir.
Moka afirma que o segredo, para ela, é aliar teoria à prática. Foto: Marcus Vinícius Beck
DM – O que significa a bateria pra você?
Moka – A bateria é o coração da música. É o que faz com que todas as outras coisas ganhem sentido. É o alicerce que reúne os demais instrumentos para formar um groove, além de definir o padrão rítmico, o encaixe da música. Faz o trem andar. Tudo é ritmo.
DM – Como foi sair da prática – em que tirava as músicas de ouvido – e cair na teoria?
Moka – Após tocar vários anos de forma prática, de ouvido mesmo, estudei teoria com o inesquecível maestro Geraldo Amaral, no Instituto de Artes. Me aprimorei com o baterista Décio Gonçalves (SP) e também com Wallace Patriarca, percussionista, baterista sinfônico e popular. O grande lance, pra mim, sempre foi unir prática com teoria.
DM – Há uma polêmica em Goiânia puxada por bares que desejam proibir bateria, com o argumento de que é um instrumento barulhento. O que tem a dizer sobre isso?
Moka – A bateria é um instrumento pra ser tocado, não pra apanhar, pra ser batido. Um assunto que tá pegando aqui em Goiânia é o fato de alguns estabelecimentos que utilizam música ao vivo não estarem permitindo mais bateria. Falam que é um instrumento alto. Mas quem toca alto é quem está nela, o baterista, não o instrumento em si. Inclusive, há um estudo chamado “Educação Musical” para que o músico possa adequar seu instrumento ao ambiente em que toca. Não é correto proibir os bateristas de trabalharem devido a tal fator.
“Mesmo papo: falamos que quem toca alto não é a bateria. É quem está conduzindo. Fui o único baterista nos anos 2000 a atuar em shopping devido à educação musical, por conta da forma como eu coloco os toques dentro dos decibéis permitidos”
DM – Anos atrás, shoppings proibiram bateristas, não foi?
Moka – Eu tive lá, outros artistas estiveram também. Mesmo papo: falamos que quem toca alto não é a bateria. É quem está conduzindo. Fui o único baterista nos anos 2000 a atuar em shopping devido à educação musical, por conta da forma como eu coloco os toques dentro dos decibéis permitidos. Ou seja, para não perturbar os ouvidos de quem está dentro do local. A bateria precisa chegar aos ouvidos e ao coração da pessoa, com delicadeza.
DM – Você acha que existe uma certa cacofonia nas plataformas de streaming, onde rolam muitos sons, mas ninguém senta para ouvi-los com calma?
Moka – Há ali o nome de quem tá cantando, mas não há qualquer menção ao compositor. Nem sabemos quem tocou. Acho isso desrespeitoso. Na época dos discos, tínhamos aquelas capas bonitas, maravilhosas, altos trabalhos visuais. Agora, acabou: ninguém se preocupa com isso. Podem me chamar de retrógrado, mas estou fora dessa onda do Spotify.
DM – Como chegavam a Goiânia as informações de rock e música brasileira nos anos 70?
Moka – As coisas ficavam em São Paulo e Rio de Janeiro. Para ouvir rock’n roll ou MPB, ainda tinha aquele resquício de bossa nova, você precisava sintonizar na Rádio Mundial AM. Tocava de tudo, o tempo todo, e meia-noite havia o programa “Música Mundial” e “Sons de Boate”. Era o Big Boy, um cara que apresentou a música mundial todinha ao Brasil. Dava meia-noite e a galera do baile ficava ligada no programa. As informações chegavam com delay no Brasil, pois primeiro saíam nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Holanda. Demoravam seis meses, às vezes até um ano, pra cruzar o Atlântico. E o centro era São Paulo e Rio – até hoje é, na verdade. Só tínhamos em Goiânia as rádios Anhanguera e Brasil Central.
DM – Como era aquele negócio da banda Akarius Seven, que o cantor foi trabalhar na rádio e vocês ouviam e tocavam as novidades do momento em primeira mão?
Moka – Isso aqui é furo, hein! Todo mundo se perguntava: pô, como os caras tocam essas músicas, têm acesso a elas antes de todo mundo? É que nosso cantor trabalhava na rádio Araguaia, equivalente a uma FM de hoje. Ele pegava lá todo aquele acervo que seria lançado em Goiás uns quatro meses depois: Michael Jackson, Prince, Aretha Franklin.
“Ao migrar para outros projetos, deixei Leo Jaime em meu lugar. Pessoal ficou impressionado com ele, tocava bem. Depois, como ele estava atrás de algo fixo, pra ter uma grana, o indiquei para uma banda, onde hoje é o estado do Tocantins”
DM – Quais são as lembranças da era dos festivais?
Moka – Em 75, no clube Cruzeiro do Sul, que existe até hoje, tinha o programa “Domingo é Dia de Rock”. Cara, era fantástico! O criador desse projeto se chamava Hélio Eurípedes. Foi fundador da banda Hippies, Cordas e Metais, contemporânea ao Akarius Seven. Então, ele trazia bandas de Goiânia, Brasília e de todo o País. O Akarius sempre tocava no local.
DM – Nessa época, você tinha um visual, digamos, pouco afeito à caretice dos militares. Meio hippie, até. Como quebrar certos paradigmas comportamentais em Goiânia?
Moka – Ostentar uma cabeleira era arriscado. Estávamos em plena ditadura. Os órgãos de repressão perseguiam aqueles que não viviam de acordo com seus ditames. Fui perseguido, detido, levado a delegacias. Rock não era legal, ao menos pra eles. Me impediram de frequentar aulas no colégio, se não cortasse o cabelo. Não cortei. E me expulsaram (risos). Um dia estava com a namorada e a Polícia Federal nos colocou num camburão e nos levou até a casa da menina para falar ao pai dela: Olha com quem sua filha está andando…
DM – Como foi sua saída da Língua Solta, banda importante à história do rock goiano?
Moka – Fui um dos fundadores da banda Língua, uma das primeiras bandas de rock autoral do Centro-Oeste. Fizemos altos shows, por anos. E, ao migrar para outros projetos, deixei Leo Jaime em meu lugar. Pessoal ficou impressionado com ele, tocava bem. Como ele estava atrás de algo fixo, pra ter uma grana, o indiquei para uma banda, onde hoje é o estado do Tocantins. Na sequência, ele se mudou para o Rio. Estava lá quando aconteceu o movimento do rock brasileiro. Indicou Cazuza a Guto Goffi, baterista do Barão Vermelho. E fez parte da banda João Penca e Seus Miquinhos Amestrados. Ficou famoso. Estourou.
Instrumentista se apresentou, em festival, para público de 40 mil pessoas. Foto: Divulgação
DM – O que te marcou nos anos 80?
Moka – Fiz parte da banda Vide Bula. Com Markan Camaralina, tocamos no evento I Festival de Rock de Goiânia. Era um público estimado em mais de 40 mil pessoas. Dividimos palco com as bandas 14 Bis, Rádio Táxi, Erva Doce e Robertinho de Recife, grande guitarrista. Nos anos 60 e 70, o rock tinha papel cultural e social.
DM – Quais foram os melhores músicos goianos com que tocou?
Moka – Itamar Correia, Fernando Perillo, Valter Mustafé, Pádua, Marcos Antônio, Georgia Brown, que está no Guiness Book como maior extensão de voz do mundo. Não posso esquecer de Nila Branco. Nem de Gilberto Corrêa, que foi muito importante na minha vida: toco com ele há mais de 35 anos. Foi um cara que me deu grande apoio em momentos difíceis da minha carreira artística. Aliás, aqui há muita gente boa.
DM – E novidades?
Moka – Está confirmado o lançamento do disco “Informação Vital”, que será lançado no mês de abril no festival Goiânia Noise. Aguardem, galera!