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Biografia minuciosa reconstrói samba-punk do Mundo Livre S/A

Em 552 páginas, jornalista Pedro de Luna narra trajetória da banda pernambucana Mundo Livre S/A em livro de prosa envolvente

Mundo Livre S/A: do punk ao mangue - Foto: Acervo da banda Mundo Livre S/A: do punk ao mangue - Foto: Acervo da banda

Lançado em 2018 pela Monstro Discos, o álbum “A Dança dos Não Famosos” revela o discurso sociopolítico engajado do Mundo Livre S/A já na capa. A imagem mostra o estudante Matheus Ferreira atingido na cabeça ao ser golpeado com cassetete por um PM.

Ferreira era um dos 30 mil manifestantes que estavam nas ruas contra as reformas trabalhista e previdenciária. O episódio se passou entre o cruzamento das avenidas Goiás e Anhanguera, no Setor Central, durante a manhã de uma sexta-feira, 28 de abril de 2017.

Vocalista e guitarrista do Mundo Livre, Fred Zero Quatro queria encontrar um conceito que ligasse as músicas do disco. A primeira faixa, “Batismo NukGruuvk”, traz versos realistas: “A esperança usa cassetete/ Feito com madeira da elevação.” Como numa crônica, a canção registra a convulsão social daqueles anos pós-impeachment da presidente Dilma Rousseff.

“A Dança dos Não Famosos” tem suas particularidades. Em termos sonoros, como ouvimos em “Tóxico” ou “Vem Pra Rua Tomar um Passo Novo”, soa-nos diferente de tudo. Mais dançante, suingado. Fruto de músicos mais jovens do que Zero Quatro. Isso lhes conferiu uma mudança criativa, uniu-os, brodagem a mil entre os caras. Resultado: música boa.

Há um outro elemento em “A Dança dos Não Famosos”: parceria com a Monstro reeditada. A primeira vez deles, conta ao DM o jornalista Pedro de Luna, aconteceu para distribuir o EP “Bebadogroove”, que valeu à banda apresentação no 13º Goiânia Noise — quando o festival foi realizado no Oscar Niemeyer. À época, o Mundo Livre tocou antes do Sepultura.

“Nesta edição do festival, saiu um CD promocional com 20 faixas e a primeira foi ‘Nêga Ivete’, dos mangueboys. O Mundo Livre S/A ainda tocou outras duas vezes no Noise: em dezembro de 2014 e em novembro de 2018 (antes do Toy Dolls), ambas no Centro Cultural Martim Cererê”, diz Luna, autor de uma volumosa biografia sobre o grupo pernambucano.

“Mundo Livre S/A 4.0 do Punk ao Manguebeat – 40 anos de Lutas, Conquistas e Muito Ativismo Cultural” nos leva a uma narrativa minuciosa. Com 552 páginas, a obra expõe a trajetória do Mundo Livre desde a praia de Candeias, em Jaboatão dos Guararapes, até o instante ao qual Fred Montenegro conheceu Havron Wolkoff, Marcelo Pereira, Renato Lins.

Em 1984, Zero Quatro chamou os camaradas das bandas Trapaça e Serviço Sujo para formar o Mundo Livre, cujo nome foi inspirado em discursos do ex-presidente dos EUA Ronald Reagan. A formação original tinha Fred (guitarra e vocal), Fábio (baixo), Jean Paul (irmão, voz e percussão), Marlius (bateria) e Havron (guitarra baiana, voz e percussão).


		Biografia minuciosa reconstrói samba-punk do Mundo Livre S/A
Da esquerda para a direita: Pedro de Luna, Otto e Fred Zero Quatro. Foto: Acervo Pessoal


Para Luna, apesar da atitude “faça-você-mesmo”, quando Mundo Livre fez seu primeiro show, em setembro daquele ano, na UFPE, Zero Quatro estava mais politizado e maduro. “Ainda assim, não havia estrutura local para praticamente nada. Os estúdios eram raros e precários, bem como os equipamentos, os técnicos de som e os locais para shows”, explica.

As rádios ignoravam as bandas de Recife, Olinda e Jaboatão. “As coisas só começaram de fato a mudar quando a própria turma do rock passou ela mesma a criar alternativas, como programas de rádio e festas com shows e DJs, baseados no lema ‘faça-você-mesmo’.”

Descoberta

Quando a pauta chegara ao Sudeste, documenta Luna, a imprensa nacional começou a prestar atenção no som que se fazia em Pernambuco. As gravadoras se atinaram ao novo. Contudo, enquanto Chico Science & Nação Zumbi assinaram com a Sony Music, o Mundo Livre estreou em disco pelo selo Banguela. Miranda criou-o na Warner junto com os Titãs.

Havia uma questão fundamental: sem grana, não tem promoção. Ou seja, até o dia em que o contrato foi assinado entre cervejas e caranguejos no mar de Candeias foram muitas furadas. Em 1988, por exemplo, Zero Quatro se lascou ao tirar um ano sabático em São Paulo atrás de alguma chance. Fez bicos, dias difíceis, fodido: viu-se tendo de retornar ao manguetown.

Mas trouxe de lá boas letras, óbvio. Dentre as composições, a icônica “Seu Suor é o Melhor de Você” se destaca: “Se tem pouco, não gaste nada/ Não vá desperdiçar.” Essa canção saiu no disco “Guentando a Ôia”, de 1996 — mesmo ano no qual, segundo Luna, o Mundo Livre tocou pela primeira vez em Goiânia, no Autódromo Internacional Ayrton Senna.

“No entanto, o caldo começou a engrossar somente em 2003, quando o grupo fechou a noite de sexta-feira no Jóquei Clube, em sua primeira vez no festival Goiânia Noise. Foi quando começou o namoro entre as duas partes”, emenda o pesquisador.

De lá para cá, a banda teve mais datas nos palcos goianienses. “O grupo também tocou na festa Quebrando Taboo, ao lado da carioca Matanza, e, em 2023 e 2024, se apresentou no Shiva Alt Bar, no Setor Oeste. Estou torcendo para o Mundo Livre S/A tocar na cidade em 2025 e, claro, com o lançamento da biografia de 40 anos da banda”, confessa.

Livro traz depoimentos de 75 entrevistados

A banda, fiel aos seus princípios artísticos e discursivos, lançou o que para os críticos foi o grande disco de 1994. Na “Folha de S. Paulo”, a jornalista Bia Abramo disse que era injusto falar de mistura “ou qualquer coisa do gênero para se referir ao tipo de música do Mundo Livre.” “Não se trata de uma mera justaposição de samba e guitarras, de rock e influências regionais”, escreveu, em cujo texto analisava as “mudanças abruptas de ritmo” do grupo.

Era samba, sim, mas com “uma atitude roqueira”. Era rock também, claro, mas “pensado a partir da ‘Cidade Estuário’, título de uma das músicas”. Daí o capítulo dedicado ao disco “Samba Esquema Noise”, de 1994, ser um dos mais extensos de “Mundo Livre S/A 4.0 do Punk ao Manguebeat”. A banda, afinal, chegou para gravar em São Paulo inexperiente.

“Estava munida somente de instrumentos velhos, e tocando as músicas de maneiras diferentes. Graças ao trabalho dos produtores Miranda e Charles Gavin (baterista dos Titãs), além do engenheiro de som Beto Machado, aos poucos o grupo foi lapidando as composições, consumindo 660 horas de estúdio. Um recorde!”, externa Luna, fã da banda desde meados dos anos 1990 por causa da mistura de samba, punk, rock e cavaquinho.


		Biografia minuciosa reconstrói samba-punk do Mundo Livre S/A
Capa do livro 'Mundo Livre S/A - Do Punk ao Mangue". Foto: Divulgação


Sobre o fato de o Mundo Livre não ter hoje tanto espaço na imprensa, o biógrafo evitar falar em boicote. Para ele, as seguidas trocas de gravadoras não permitiram um planejamento adequado do trabalho. “No segundo disco, a Banguela já tinha falido e o passe do grupo foi parar na Excelente, um novo selo criado pelo Miranda na Polygram.”

No terceiro disco, prossegue Luna, houve outra movimentação no mercado fonográfico. “Carnaval na Obra” chegou às lojas um ano depois de gravado, em 1998, pela Abril Music. O quarto, “Por Pouco”, foi ainda mais dramático. “Além dos embates da banda com os executivos da Abril, o Miranda estava na Trama e, pela primeira vez, fizeram um disco sem ele - ainda que eu particularmente ache o 'Por Pouco' um dos melhores de todos”, conta.

“Dali em diante, o grupo rompeu com a Abril Music e voltou de vez para a independência, mesmo sabendo o ônus e o bônus de ter estrutura muito mais enxuta do que integrando o cast de uma grande companhia de discos”, observa o biógrafo, dizendo que a maioria da imprensa séria sempre deu espaço ao Mundo Livre, mesmo que voltasse ao underground.

Personagens

Setenta e cinco pessoas foram entrevistadas para “Mundo Livre S/A 4.0 do Punk ao Manguebeat – 40 anos de Lutas, Conquistas e Muito Ativismo Cultural”. O livro tem depoimentos de Otto (percussionista nos dois primeiros discos), Karina Buhr, Fabio Trummer, Mario Caldato Jr, Stela Campos, Jorge du Peixe, Lucio Maia, Pupillo e Xico Sá.

Considerado o “The Clash brasileiro”, o Mundo Livre não é uma banda fácil. Ao mesmo tempo que os entrevistados expressavam amor, notou Luna em suas conversas com os personagens, eles também demonstravam momentos de raiva. “Uma banda formada dentro de casa, com três irmãos, que após 20 anos de estrada se viu obrigada a demitir um dele.”

“Um grupo que trocou várias vezes de empresário, que em alguns momentos trocou os pés pelas mãos, mas que mesmo dando algumas bolas fora, continuou apaixonante. Mesmo quem saiu da crew magoado, hoje sente o mesmo carinho e admiração pelo grupo”, afirma, explicando que o Mundo Livre demonstra um certo relaxamento com a parte executiva.

Lembremos dos versos de Mick Jagger em “Street Fighting Man”: “O que pode um garoto pobre fazer, a não ser tocar numa banda de rock?” O conselho dessa música dos Rolling Stones foi seguido direitinho por Fred Zero Quatro. Ainda bem, o Mundo Livre é Clash com Jorge Ben Jor. Melhorou demais o nosso rock, tornou-o mais inteligente e político.

Por fim, o pesquisador avisa ao Diário da Manhã que o livro está à venda em sites como Amazon, Estante Virtual e UmLivro, porém quem preferir pegar direto com ele é só escrever ao seguinte email: [email protected]. Se liga: a leitura é indispensável.

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