George Harrison já me levou a revirar todo rock disponível na atmosfera eletrônica de Goiânia. Esse som pode até tá empoeirado, mas amo os Beatles. Tenho certeza de que é possível passar a vida curtindo os acordes de Harrison, os solos construídos pelo cara, os riffs dele (seja nos Fab Four ou na carreira solo), elegendo até quais são nossos favoritos.
Puxo da estante o romance “Tanto Faz”, publicado por Reinaldo Moraes, entre os anos 70 e 80. “Há uma canção dos Beatles pra cada momento da vida, se for pensar bem”, constata o pícaro Ricardo de Mello, o narrador embaladão pelo frisson sexual da boêmia carioca.
Beatles rolando na vitrola. Tô arrepiadaço. “Something in the way she moves/ Attracts like no other lover”, ouço, enquanto escrevo. Harrison, o guitarrista principal do lendário quarteto inglês, desbravou novo território como instrumentista. Nos anos 60, encontrou o lugar das seis cordas elétricas na música pop. Para ele, o estúdio era um laboratório criativo.
Escutá-lo jamais será demodê. Nem ler a respeito dele, como demonstra a editora Belas Letras. Sai neste sábado a biografia “O Beatle Relutante”. Escrita pelo jornalista inglês Philip Norman, a obra parte do princípio de que os Fab Four podem ter dado a Harrison fama e riqueza, porém depositaram sobre os ombros do guitar hero fardo difícil.
Contraditório e volúvel — como são os gênios —, lidou com o fantasma dos Beatles pelo resto da vida, encerrada em 2001, aos 58 anos, vítima de câncer. Ao mesmo tempo em que criticava o mundo material, compôs música de verniz pop espinafrando imposto de renda.
Por anos, restaurou propriedade em Friar Park como parte de uma jornada espiritual, mas a hipotecou para bancar o filme “A Vida de Brian”, condenado ao fracasso. Poderia — sim — ter ataques de fúria. Só que fortaleceu amizade com Eric Clapton mesmo sendo traído pelo amigo e pela esposa, Pattie Boyd. Era humano, demasiadamente humano, por assim dizer.
George Harold Harrison era caçula de quatro filhos do descapitalizado casal Harold e Louise. Nascido em fevereiro de 1943, apaixonou-se por música na infância, já que seus pais ouviam big bands de jazz, standards estadunidenses e skiffle, estilo britânico influenciado pelo blues, popular entre jovens nos anos 50. Aos 12 anos, ganhou o primeiro violão.
Entre os anos 50 e 60, o guitarrista foi decisivo para a sonoridade dos Beatles. Escutava R&B, o soul da Motown e o rock acelerado de Little Richard. Elvis Presley, claro, se fazia presente, porque mexia com a cabeça dos jovens. Gostava ainda de Carl Perkins, lenda do rockabilly e autor do hit “Blue Suede Shoes”, colorindo a musicalidade da banda.
“Mas então ficamos famosos e isso estragou tudo, porque nós simplesmente andávamos pelo mundo cantando as mesmas 10 músicas idiotas" George Harrison, guitarrista
Harrison estudava também acordes de jazz, cujo recurso enriqueceu os primeiros arranjos criados pelos Beatles. Allan Kozinn, crítico musical, afirma que o guitarrista era meticuloso quando se tratava de gravação. Como exemplo, o pesquisador cita o solo construído para a canção “I'm Only Sleeping” (Lennon), gravada no disco “Revolver”, de 66.
Conforme Kozinn, Harrison desenhou a guitarra solo, pensou as notas em ordem reversa e fez overdub numa gravação da música que estava sendo executada ao contrário. “Para complicar ainda mais as coisas, gravou duas versões do solo — uma limpa, uma com a guitarra distorcida — e as combinou. Sua contribuição para a música de três minutos levou seis horas para ser gravada”, diz, no obituário do músico, publicado no “New York Times”.
Então, você pensa, Harrison era foda? Era. Mas — veja — poderia ser considerado talento menor, caso fosse comparado aos gênios Lennon e McCartney. E, mesmo assim, criou as obras-primas “While My Guitar Gently Weeps” e “Here Comes the Sun”. Pesquisadores o inserem dentre os deuses das seis cordas, ao lado de Eric Clapton, Jimi Hendrix, Keith Richards, Jimmy Page e Jeff Beck, lendas do instrumento transgressor nos anos 60.
'Pesar com seriedade'
Norman afirma que, nessa turma, era único a “pensar com seriedade”. “Os Beatles, e depois o pop comercial como um todo, deram uma guinada radical após George descobrir a cítara e adotar a religião e filosofia indianas. Melhor seria o chamarmos de a Grande Minoria dos Beatles”, escreve, em “O Beatle Relutante”. O biógrafo destaca que, durante o frisson pela banda, nos anos 60, ninguém o rebaixaria a figurante. “Era quase tão adorado quanto Paul.”
Lennon se posicionava à direita, de forma que pudesse olhar para o público, com Paul à esquerda, numa localização adequada para lançar piscadelas e acenos. Harrison, por sua vez, limitava-se a ficar poucos passos atrás da dupla, concentrado nos solos e nos acordes. Foi o primeiro beatle a argumentar que a banda precisava deixar de se apresentar em público, pois lhe incomodava a histeria juvenil das plateias quando estavam no palco.
No começo, confessava, era bom. Costumavam tocar em clubes. “Você ficava muito bom no instrumento”, explicava. “Mas então ficamos famosos e isso estragou tudo, porque nós simplesmente andávamos pelo mundo cantando as mesmas 10 músicas idiotas.” Harrison foi peça-chave na mudança de rumo, que deu nos discos “Revolver”, “Sgt Pepper´s…”, “Magical Mystery Tour”, “White Album”, “Yellow Submarine”, “Abbey Road” e “Let It Be”.
Como beatle, gravou 13 elepês, em que se alternava entre violão, guitarra e voz. A partir de 65, tornou-se estudioso da música e filosofia indianas, às quais foi apresentado pelo músico David Crosby. Conheceu, então, Ravi Shankar — de quem ficaria amigo. Essa amizade seria definidora nos próximos passos dados por Harrison em sua carreira.
Lançaria, em 71, o elepê triplo “All Things Must Pass”. Produção sua com Phil Spector, reúne canções relegadas pela dupla Lennon-McCartney nos tempos de Beatles. Um elenco estrelar aparece, como Billy Preston, Phil Collins, Clapton e os remanescentes do Delaney & Bonnie. As músicas mostram avançada espiritualidade, caso de “Beware of Darkness”, “The Art Of Dying” e “My Sweet Lord”, considerada pelo juiz Richard Owen “plágio inconsciente”.
Mestre do slide guitar, satirizou o processo na música “This Song”, publicada em 76 no disco “Thirty Three & ⅓”. Aproximou-se do blues com os discos “'Extra Texture” (1975) e “'33 ⅓”' (1976). Nos anos 70, criou a gravadora Dark Horse, lançando bandas de rock e soul. Juntaria-se, na década seguinte, a Bob Dylan, Jeff Lynne, Tom Petty e Roy Orbison no supergrupo Traveling Wilburys. Apesar do elenco de grandes músicos, não pegou.
Em 97, meses após publicar o disco “Chants Of India”, gravado com Shankar, Harrison foi diagnosticado com câncer. Conforme depoimento de amigos íntimos, o guitarrista reagiu bem ao tratamento. Tudo piorou, no entanto, quando a casa em que vivia foi invadida por um homem transtornado de 34 anos. Michael Abram esfaqueou ex-beatle dezenas de vezes.
Segundo a imprensa da época, o câncer de Harrison voltou mais agressivo após o episódio. O guitarrista morreu em 29 de novembro de 2001, numa casa de Paul McCartney em Los Angeles, nos EUA. Ele estava acompanhado pela esposa Olivia Harrison e pelo filho do casal, Dhani. Ravi Shankar se fez presente. “O Beatle Relutante” é imperdível.
GEORGE HARRISON O BEATLE RELUTANTE
Philip Norman, autor
Belas Letras, editora
504 páginas
R$ 110,40