São onze e meia da manhã. O repórter espera o cineasta Kleber Mendonça Filho, 54. Roteiro à mão, perguntas na cabeça, ideias no papel. Passam-se um ou dois minutos. Cadê Kleber? Eis que ele surge na tela do Zoom. À noite, na quarta, embarcou para a França. No Festival de Cannes, essa marché du film, Kleber exibe “Retratos Fantasmas”, seu novo filme cujo personagem principal é o centro do Recife. Arquitetura histórica, espaço de convívio. Há duas sessões: uma na sexta, 19, às 19h15; a outra no domingo, 21, às 11h15.
Kleber acredita que as pessoas se apaixonaram por “Aquarius” (2016) e “Bacurau” (2018). Não está errado: quando anunciou no Facebook que o documentário teria estreia em Cannes, houve quem lhe aplaudisse, como imaginado, mas também aqueles que manifestaram contrariedade à ideia de um doc sobre “cinemas antigos” da cidade na qual nasceu, formou-se, iniciou-se como jornalista e despontou ao mundo na condição de diretor.
“Sou um grande defensor do cinema de gênero. Mas nem todos os filmes que quero fazer são filmes de gênero. Cada filme é um pouco como a gente, quando vai sair”, pontua o cineasta, em entrevista ao Diário da Manhã, na quarta, 17. Neste caso, Kleber se mostra numa roupagem memorialística dos grandes cinemas recifenses que atravessaram o século 20. Tanto que, durante a pesquisa, encontrou um “tesouro” criado pelo conterrâneo Ângelo Lima, hoje radicado em Goiânia e um nome fundamental para o cinema goiano.
A obra, chamada “Ato Público Pela Volta da Alegria”, foi rodada em 1981 na área em que “Retratos Fantasmas” se passa, ou seja, no centro de Recife. Ao tomar conhecimento dessas imagens e analisar a relevância delas, Kleber não demorou a entender que, na verdade, tinha em mãos uma preciosidade histórica. Mandou o filme aos Estados Unidos e, pouco tempo depois, Ângelo o recebeu de volta, agora já restaurado. A produção, então, o telefonou e perguntou se seria possível usar as imagens. “Sim”, disse-lhes o pernambucano-goiano.
Cineasta de fina ironia e texto refinado, Kleber Mendonça Filho define o aceite de Ângelo Lima como uma “cortesia”. “Usamos material do filme dele no nosso. Eu acho que ‘Retrato Fantasma’ foi construído dessa forma”, diz o cineasta, para quem olhar o passado de uma cidade e suas imagens é como enxergar um fantasma. Mas atesta que, em “Retratos”, com o qual participa da Seleção Oficial de Cannes pela terceira vez, não quer fazer uma carta de amor ao cinema, uma vez que isso já foi feito demais. Quer mostrar sua relação com Recife.
“Eu espero que o filme, na verdade, seja visto logo para que essas novas maneiras de vê-lo possam ser utilizadas para descrever a obra. Certamente tem uma relação muito dúbia, que eu tenho com a minha própria cidade. É uma cidade que se maltrata muito, ou talvez a maltratam demais”, reflete Kleber, um dos mais profícuos expoentes do cinema pernambucano, fragilizado na década de 1990 e que, aos poucos, obteve posição de destaque no cenário audiovisual nos anos 2000. Em grande medida, é bom dizer, graças aos festivais.
De Recife para o mundo
Com talento e arrojo estético, a cena local foi adquirindo autoconfiança. Se as condições para filmar nem sempre foram fáceis por lá, nomes como Claudio Assis - diretor de “Amarelo Manga” e “A Febre do Rato” - ajudaram a passar uma importante mensagem aos mais jovens: façam o que quiserem. Na sequência, veio a geração de Camilo Cavalcanti e Kleber Mendonça Filho, até que, anos depois, apareceu a turma da Símio Filmes, com Gabriel Mascaro, Marcelo Pedroso e Juliano Dornelles, este diretor de “Bacurau”, junto com Kleber.
Nascido em 1968, Kleber se destaca pela abordagem das desigualdades sociais. É o que mostra, por exemplo, no longa-metragem “Som ao Redor” (2012), primeiro de ficção que assinou. Ao retratar a classe média recifense, o cineasta elabora uma crítica à ascensão social urbana e, às ruas, transfere distúrbios sociais que possuem resquícios escravocratas: um senhor é dono de grande parte das casas, as reuniões de condomínio são preconceituosas e as empregadas servem seus patrões. Roteiro telegráfico, fluxo claro de ideias. Virou até livro.
Se “Som ao Redor” desenha um conflito de classes, em “Aquarius” (2016), a classe dominante briga consigo própria. Interpretada pela atriz Sônia Braga, a personagem Clara (jornalista e escritora) luta contra a especulação imobiliária, ao mesmo tempo em que se vê deslocada da posição desfrutada no condomínio, a de moradora antiga. Foi indicado à Palma de Ouro, em Cannes, mas perdeu o prêmio, embora a equipe tenha chamado atenção do mundo durante protesto contra o impeachment da então presidente Dilma Rousseff.
Streaming
“Gosto de saber que ‘Som ao Redor’ e ‘Aquarius’ estão no Netflix, no Brasil, e qualquer pessoa, jovem ou velha, pode no domingo à tarde fazer uma descoberta. Ah, é aquele filme que tem a Sônia Braga. Então, vou dar uma olhada”, revela o diretor, que voltou a trabalhar com Sônia no distópico “Bacurau”. À época de sua estreia, no primeiro ano de Jair Bolsonaro como presidente, o “faroeste futurista” encontrou equivalência na realidade. O próximo filme de Kleber Mendonça Filho, “O Agente Secreto”, se passa no final dos anos 70 e tem Wagner Moura vivendo um professor e chefe de departamento numa universidade.
Para Kleber, a sociedade vive uma época em que há muita mentira e muitas desinformações criadas em laboratório. “Eu que agora, com essa volta a um senso de normalidade no nosso País, tenham novos parâmetros de checagem de informação”, sugere o cineasta, acrescentando que, se as ruas têm regras, também é necessário tê-las nas redes. “A internet é um lugar que faz parte da vida de todos nós, que molda a maneira como as pessoas pensam e eu acho que a regulamentação é um primeiro passo muito importante.”
Mas também quer assistir a filmes goianos, pernambucanos, cariocas, paulistas e até do interior catarinense. “Quero entender o que estão pensando. O que estão filmando, mas, para isso, a gente precisa ter uma política de estímulo à produção e de estímulo à preservação. O Brasil é um país que não consegue guardar suas imagens”, diz o cineasta. Segundo Kleber, o normal é o Brasil participar de Cannes. “Para mim, isso é normal no sentido de o Brasil ser um país que produz cultura e tem uma nação produtora de cultura.”