Brasília (DF) - Como caminhavam contra vento, sem lenço e tampouco documento, Caetano Veloso e Maria Bethânia subiram ao palco montado no Mané Garrincha assim que os primeiros acordes do hino tropicalista “Alegria, Alegria” ressoaram pelo estádio. Tudo remetia para o ano da graça de 1978 — quando Caetano & Bethânia excursionaram em dupla pela primeira vez.
O 9 de novembro de 2024 é para nunca ser deletado do disco rígido craniano. Nunca mais. Não foi apenas libertador assisti-los juntos em cena, foi certeza de que Brasil tem o som do quereres. Onde querias ternura, meu velho, eles eram tesão. Brasília se odarizou, digamos.
Estou na fila para dar entrada ao hotel. À minha frente, um casal jovem confabula o que há de melhor em matéria amorosa. Sorridentes, os amantes trocam beijos apaixonados. Bate até uma felicidade neste repórter caetaneado. Atrás de mim, um homem e uma mulher, quarenta e tantos anos, cinquenta, trocam o pão com manteiga do cotidiano pelo caviar antimonotonia.
São 15h23, me avisa o smartphone. Imagine, amigo, quantos casais se amam agora. Corpos emitindo orgasmos vespertinos no Setor Norte Hoteleiro. Sussurros e gemidos de duas pessoas que se amam, que se desejam, que se caetanearam. Chegou o dia, nem acreditam.
Se o tempo — compositor de destinos — levou a voz dos artistas para região mais afinada, esse mesmo tempo irradia saudade impreenchível: Gal Costa. A doce bárbara, cuja morte comoveu o Brasil há dois anos, recebe justa homenagem na turnê “Caetano & Bethânia”.
Foi bonita a veneração, pá, fiquei comovido. Na clássica “Baby” (impossível não lembrarmos Gal), Bethânia acentua verso “Baby, I Love You”, em lindíssima forma de declarar amor à cantora inesquecível. Depois dessa canção, Caetano & Bethânia interpretam o rock “Vaca Profana”, que teve refrão vocalizado — com expressividade intensa — por Maria Bethânia.
Não seria delírio dizer que Caetano & Bethânia se mantêm seguros em cena. Quatro músicas dão indícios de que o roteiro será cravejado de hits: “Alegria, Alegria”, “Os Mais Doces Bárbaros”, “Gente” e “Oração ao Tempo”. “És um senhor tão bonito/ quanto a cara do meu filho/ tempo, tempo, tempo, tempo/ Vou te fazer um pedido”, cantam, reflexivos.
Artista genial e de alma provocadora, Caetano acenou para evangélicos ao defender o hit gospel “Deus Cuida de Mim”, do pastor Kleber Lucas, a quem teceu loas. O cantor ainda lembrou, antes de apresentar canção, que neopentecostais estão em crescimento no Brasil. “Respeito-os”, salientou tropicalista, que tem se aproximado dessa religião nos últimos anos.
Quando soltara o gogó, Bethânia demonstrou por que é nossa maior drama-majestade em atos contínuos. Seu estilo vocal, dramaticamente teatral, acentua versos românticos e perpassa universo das religiões afro-brasileiras. Dicção fortíssima. Vocaliza coisas poderosas demais, vigorosas demais, e também fala mansinho — se assim a música lhe pedir.
A gente acha que já escutou tudo. A gente nem escutou nada ainda. Embora calvo, ainda me sobram fios para assombros musicais. Estamos vivos. Estamos com tesão. Às vezes, brutalizados pelo ódio, a gente se acha incapaz de sentir aquela emoção forte. Besteira.
Repertório
Na perspectiva temporal, eixo sobre o qual se ampara o show, Caetano & Bethânia percorrem uma estrada musical de 60 anos. Inicia, como já dito aqui, na revolução tropicalista personificada por “Alegria, Alegria”, rememorando registros familiares em Santo Amaro da Purificação (BA), terra na qual nascera o samba de roda. Esse estilo se fez representado em “13 de Maio”, “Samba de Dois-Dois” e “A Donzela se Casou”.
Lucas Nunes (guitarra e violão de nylon), Paulo Dáfilin (violão de nylon e de 12 cordas), Jorge Helder (contrabaixo) e Kainã do Jeje (bateria e percussão) foram os responsáveis pelo chão da música. Completam o time de instrumentistas os músicos Jorge Continentino (sax alto e clarinete), Diogo Gomes (trompete e flugelhorn), Marlon Caldeira (trombone), Rodrigo Tavares (teclado), Joana Queiroz (clarinete e clarone), Thiaguinho da Serrinha (percussão).
Os backing vocals, na medida certa, eram desenhados pelas cantoras Jeni Rocha, Fael Guimarães e Janeh Magalhães (vocais). Houve ainda participação especial de Pretinho da Serrinha, ovacionado. Bia Lessa, por sua vez, é creditada como responsável pelo cenário.
Luxuoso e metálico, o arranjo de “Motriz” é belo — como o show em si. Caetano estilhaça corações apaixonados ao evocar o compositor Peninha na romântica “Sozinho”. Na toada sentimental, o cantor ainda executou a apaixonante “Você é Linda”, cujos versos “você é linda, e sabe viver/ você me faz feliz/ esta canção é só pra dizer e diz” levou a galera às lágrimas.
Diante do público em êxtase, Caetano balbuciou “O Leãozinho”. Logo depois, Bethânia colocou seu canto para realçar as emoções do samba-canção “Negue”, bem como da dor de cotovelo “As Canções que Você Fez Pra Mim”, esta composta pela dupla Roberto e Erasmo Carlos. O maluco beleza Raul Seixas também foi celebrado em releitura do hit “Gita”.
Entre o erudito e o popular, “O Quereres” deixou o público com a alma lavada, enquanto “Reconvexo” e “Tudo de Novo” apenas confirmaram que o show havia sido sucesso irrefutável. A passagem de Caetano & Bethânia por Brasília se encerrou com “Odara”, que recebeu arranjo matador ao melhor estilo Black Rio. Tudo como joia rara no Mané Garrincha.